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terça-feira, 11 de setembro de 2018

CARTOLA: É DE SE TIRAR O CHAPÉU



O início do século XX no Rio de Janeiro viu um novo capítulo de uma já velha história. O morro dos Telégrafos, uma colina próxima do bairro de São Cristóvão, começou a ser habitado por pessoas bastante pobres, sem lugar alternativo onde morar. Em pouco tempo, a musicalidade que as acompanhava fez com que surgissem blocos e ranchos de carnaval. Segundo os versos do samba “Sala de Recepção”, era assim que as coisas aconteciam:
“Habitada por gente simples e tão pobre
Que só tem o sol que a todos cobre
Como podes, mangueira, cantar?

Pois então saiba que não desejamos mais nada
A noite, a lua prateada
Silenciosa, ouve as nossas canções

Tem lá no alto um cruzeiro
Onde fazemos nossas orações
E temos orgulho de ser os primeiros campeões

Eu digo e afirmo que a felicidade aqui mora
E as outras escolas até choram
Invejando a tua posição

Minha mangueira essa sala de recepção
Aqui se abraça inimigo
Como se fosse irmão”

O autor das linhas acima era um garoto de meros 20 anos de idade em 1929, era membros do Bloco dos Arengueiros, era bom de batuque e de ritmo (dizem que era bom de briga também), chamava-se Angenor de Oliveira e passou orgulhosamente à história da música brasileira pelo apelido: Cartola.

O jovem logo percebeu que sua agremiação só conseguiria ser forte e prevalecer frente às outras caso se unisse às demais daquela localidade. Foi assim que surgiu a Escola de Samba Estação Primeira de Mangueira. O “Primeira” era uma referência ao fato de estar localizada na primeira estação de trem, a partir da Central do Brasil, a oferecer samba a eventuais interessados. As cores, escolhidas por Cartola, verde e rosa, estavam presentes desde seu início.

O jornalista Sérgio Cabral diz que a fundação da Escola se deu em “reunião realizada na casa de Euclides Roberto dos Santos, na travessa Saião Lobato, 21”. Cartola estava presente, claro.

Uma passagem muito famosa da vida de Cartola se deu quando foi encontrado pelo jornalista Sérfio Porto, no bairro de Ipanema, na Zona Sul do Rio de Janeiro, lavando carros. Cartola estava desaparecido dos seus conhecidos há décadas e este episódio abriu caminho para sua segunda fase musical, pós-1950, açodada pelo seu casamento com Dona Zica, pela abertura de seu bar Zicartola, concorrido ponto de encontro da juventude, no centro do Rio, pela gravação de dois discos de sucesso, pela escolha do hit “As rosas não falam” como trilha sonora de uma novela da Globo etc. Mas a primeira fase musical do poeta, por si só, já lhe garantiriam lugar no panteão dos mestres da música brasileira.

Cartola sempre teve trejeitos elegantes: falava mansamente, suas composições eram cheias de musicalidade e de poesia, portava-se altivamente. Seu apelido veio dos tempos em que trabalhava como pedreiro, quando decidiu vestir um chapéu-coco para evitar que o cimento sujasse seu cabelo. Como o chapéu lembrava uma cartola, o apelido colou.

À frente da Escola que ajudou a fundar, Cartola compôs obras de grande repercussão: em 1928 compôs “Chega de demanda”; em 1932 veio com samba “Divina Dama”, gravado por Francisco Alves, o Rei da Voz; também é desse ano “Que infeliz sorte”; Carmem Miranda gravou duas do “Divino”, “Tenho um novo amor” e “Não quero mais amar a ninguém” (não composta por ele, mas interpretada com distinção). Em 1940, o maestro norte americano Leopold Stokowski gravou “Quem me vê sorrindo”, no âmbito de um estudo sobre música popular brasileira.

Ainda no início da década de 1950, gênios musicais como Garoto levaram a música brasileira até as barras da modernidade musical: a partir de influências nacionais e do jazz americano, com o auxílio das invenções melódicas de Radamés Gnatalli, abrasileirando as evoluções musicais estrangeiras, e com o tempero final vindo da Bahia, a cargo de João Gilberto, nascia em meados daquela década um novo gênero musical, no linguajar da época, uma bossa nova... e assim ficou conhecida: Bossa Nova.
Surgiram nomes que alcançaram o patamar de estrelas internacionais: Tom Jobim, Newton Mendonça, João Gilberto, Nara Leão etc. E, em dado momento, esse músicos “modernos” sentiram a necessidade de reverenciar e ajudar a divulgar os artistas que haviam preparado o caminho para a Bossa Nova.

E o encontro entre a “bossa velha” e a “bossa nova” se deu nas dependências do ínclito Zicartola. Foi lá que sambistas tradicionais, como Ismael Silva e Nelson Cavaquinho, travaram contato com a geração mais recente, a exemplo de Nara Leão, quem já apresentava seu show Opinião, ao lado do sambista da Era do Rádio Zé Kéti.

A gravadora Marcus Pereira se encarregou de deixar um belo registro da rica produção musical de Cartola. Produzidos por J.C. Botezelli, o Pelão, o primeiro disco trazia clássicos executados por músicos primorosos; o segundo disco, de 1976, trazia um sucesso arrebatador: As Rosas não falam – e Cartola emplacou uma música em uma novela da Rede Globo. Cartola era agora pop e não parava de se apresentar em todo o país.

As duas fases do sambista possuem musicalidades distintas. A primeira delas, que se deu nas décadas de 1934 e 1940, é marcada por sambas rápidos, batucados, feitos para serem executados por uma Escola de Samba. A segunda fase, mais madura, é marcada por obras como “As rosas não falam”, “O mundo é um moinho”, “Peito vazio”, “Tive sim”, em que a melodia e a poesia se sobressaem.

Sobre Cartola, o poeta Carlos Drummond de Andrade escreveu assim em sua coluna no Jornal do Brasil: “Cartola sabe sentir com a suavidade dos que amam pela vocação de amar, e se renovam amando. Assim, quando ele nos anuncia: ‘Tenho um novo amor’, é como se desse a senha pela renovação geral da vida, a germinação de outras flores no eterno jardim. O sol nascerá, com a garantia de Cartola. E com o sol, a incessante primavera...”

No fim da vida, desejando um pouco de paz e sossego, algo que ele não mais conseguia na sua adorada Mangueira, mudou-se para o bairro de Jacarepaguá, onde faleceu.


Rubem L. de F. Auto

Fonte: “Almanaque do Samba: a história do samba...”

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