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quarta-feira, 12 de setembro de 2018

FEIJÃO, SAMBA E CACHAÇA: A FEIJOADA ENCONTRA O BRASIL



A feijoada é considerada um dos símbolos culinários nacionais, mas sua história é bem mais antiga e de meandros mais complexos do que pode parecer à primeira vista.

O principal ingrediente desse prato, o feijão preto, teve seu cultivo iniciado pelos índios que habitavam nosso território e se diferenciava dos feijões europeu e africano. Os índios guaranis chamavam o feijão preto de comanda, comaná ou cumaná.  

O outro ingrediente sempre presente na farofa que lhe serve de acompanhamento, a farinha de mandioca também foi um cultivo indígena e de muito fácil acesso, a ponto de fazer parte da alimentação tanto dos índios, quanto dos africanos e dos europeus no Brasil.

Roças de feijão e de mandioca eram encontradas em diversos locais, como em torno das residências, especialmente das residências mais simples.

O feijão era um alimento de tão fácil acesso que fazia parte da alimentação dos escravos, na sua forma misturada com farinha de mandioca – embora alguns sustentem que a alimentação dos escravos nas senzalas era unicamente água com farinha de mandioca.

O prato em si é apenas uma derivação dos pratos europeus que tinham como base um caldo rico em sabor, onde ser cozinham a carne e outras partes dos animais, como pé e orelha de porco. Essa história pode ser traçada até milênios atrás. Segundo Câmara Cascudo, no Império Romana, na região do mediterrâneo, existiam pratos similares e prova disso são os diversos pratos latinos que seguem essa receita básica: cozido, em Portugal; cassoulet, na França; paella, na Espanha; casouela, na Itália.

Ao se utilizar feijão preto, partes de suínos, linguiça, a farofa de farinha de mandioca e os acompanhamentos à base de legumes e verduras, nasceu a feijoada.

Mas Carlos Alberto Dória entende que a feijoada é derivada de outro prato, o chamado “feijão gordo”. Este, seria um ensopado de feijão, toucinho e carne seca. Ao se acrescentarem linguiça, legumes, verduras e partes do porco, o feijão gordo assim enriquecido se tornou a feijoada.

Aliás, a antiga descrição da feijoada como prato originado da cozinha das senzalas caiu por terra quando Câmara Cascudo confrontou essa tese com o fato de que grande parte dos escravos trazidos da África era de religião islâmica, portanto proibidos de consumir carne de porco.

O prato completo, na forma como o conhecemos, foi criado em meados do século XIX, incluído no menu de restaurantes caros, reservados à elite. Passo seguinte, chegou aos hotéis e às pensões.

No século XX, finalmente, a feijoada alcançou o patamar de identidade nacional pelas mãos dos artistas modernistas, sedentos de símbolos que representassem a antropofagia como método de formação da brasilidade (a fusão de elementos culturais de diferentes locais do mundo). Mário de Andrade inclusive usou uma cena de festa, em Macunaíma, para apresentar a cozinha brasileira e diversas outras que nos influenciaram.

Por fim, foi no bairro da Cidade Nova que o samba se encontrou com a feijoada para nunca mais se desgrudarem. Fundamental foi o papel exercido pelas “tias” do samba: organizavam festas cujos atrativos eram o feijão, o samba e a cachaça. Esse fato está expresso em letras de sambas como “No pagode do Vavá”, de Paulinho da Viola:
“Domingo, lá na casa do Vavá
Teve um tremendo pagode
Que você não pode imaginar
Provei do famoso feijão da Vicentina
Só quem é da Portela é que sabe
Que a coisa é divina

Tinha gente de todo lugar
No pagode do Vavá

Nego tirava o sapato, ficava à vontade
Comia com a mão
Uma batida gostosa que tinha o nome
De doce ilusão
(...)”

A Tia Vicentina era irmã de Natal da Portela, bicheiro e patrono da Escola de Samba presente em seu agnome. Impossível não pensar nas famosas Tias da Praça Onze, que inspiraram as alas das baianas e que cozinhavam quitutes muito apreciados.

Uma receita bem famosa de feijoada foi descrita por Vinicius de Morais no seu apetitoso “Feijoada à Minha Moda”:
“Amiga Helena Sangirardi
Conforme um dia eu prometi
Onde, confesso que esqueci
E embora - perdoe - tão tarde

(Melhor do que nunca!) este poeta
Segundo manda a boa ética
Envia-lhe a receita (poética)
De sua feijoada completa.

Em atenção ao adiantado
Da hora em que abrimos o olho
O feijão deve, já catado
Nos esperar, feliz, de molho.

E a cozinheira, por respeito
À nossa mestria na arte
Já deve ter tacado peito
E preparado e posto à parte

Os elementos componentes
De um saboroso refogado
Tais: cebolas, tomates, dentes
De alho - e o que mais for azado

Tudo picado desde cedo
De feição a sempre evitar
Qualquer contato mais... vulgar
Às nossas nobres mãos de aedo

Enquanto nós, a dar uns toques
No que não nos seja a contento
Vigiaremos o cozimento
Tomando o nosso uísque on the rocks.

Uma vez cozido o feijão
(Umas quatro horas, fogo médio)
Nós, bocejando o nosso tédio
Nos chegaremos ao fogão

E em elegante curvatura:
Um pé adiante e o braço às costas
Provaremos a rica negrura
Por onde devem boiar postas

De carne-seca suculenta
Gordos paios, nédio toucinho
(Nunca orelhas de bacorinho
Que a tornam em excesso opulenta!)

E - atenção! - segredo modesto
Mas meu, no tocante à feijoada:
Uma língua fresca pelada
Posta a cozer com todo o resto.

Feito o quê, retire-se caroço
Bastante, que bem amassado
Junta-se ao belo refogado
De modo a ter-se um molho grosso

Que vai de volta ao caldeirão
No qual o poeta, em bom agouro
Deve esparzir folhas de louro
Com um gesto clássico e pagão.

Inútil dizer que, entrementes
Em chama à parte desta liça
Devem fritar, todas contentes
Lindas rodelas de lingüiça

Enquanto ao lado, em fogo brando
Desmilingüindo-se de gozo
Deve também se estar fritando
O torresminho delicioso

Em cuja gordura, de resto
(Melhor gordura nunca houve!)
Deve depois frigir a couve
Picada, em fogo alegre e presto.

Uma farofa? - tem seus dias...
Porém que seja na manteiga!
A laranja gelada, em fatias
(Seleta ou da Bahia) - e chega.

Só na última cozedura
Para levar à mesa, deixa-se
Cair um pouco da gordura
Da lingüiça na iguaria - e mexa-se.

Que prazer mais um corpo pede
Após comido um tal feijão?
- Evidentemente uma rede
E um gato para passar a mão...

Dever cumprido. Nunca é vã
A palavra de um poeta... - jamais!
Abraça-a, em Brillat-Savarin
O seu Vinicius de Moraes.”


Como uma última sugestão de preparo, segue a receita mais modesta trazida por Chico Buarque em “Feijoada Completa”:
“Mulher, você vai gostar:
Tô levando uns amigos pra conversar.
Eles vão com uma fome
Que nem me contem;
Eles vão com uma sede de anteontem.
Salta a cerveja estupidamente
Gelada pr'um batalhão
E vamos botar água no feijão.

Mulher, não vá se afobar;
Não tem que pôr a mesa, nem dá lugar.
Ponha os pratos no chão e o chão tá posto
E prepare as lingüiças pro tiragosto.
Uca, açúcar, cumbuca de gelo, limão
E vamos botar água no feijão.

Mulher, você vai fritar
Um montão de torresmo pra acompanhar:
Arroz branco, farofa e a malagueta;
A laranja-bahia ou da seleta.
Joga o paio, carne seca,
Toucinho no caldeirão
E vamos botar água no feijão.

Mulher, depois de salgar
Faça um bom refogado,
Que é pra engrossar.
Aproveite a gordura da frigideira
Pra melhor temperar a couve mineira.
Diz que tá dura, pendura
A fatura no nosso irmão
E vamos botar água no feijão.”


Rubem L. de F. Auto

Fonte: “Almanaque do samba: a história do samba...”

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