A feijoada é considerada um dos símbolos culinários
nacionais, mas sua história é bem mais antiga e de meandros mais complexos do
que pode parecer à primeira vista.
O principal ingrediente desse prato, o feijão preto, teve
seu cultivo iniciado pelos índios que habitavam nosso território e se
diferenciava dos feijões europeu e africano. Os índios guaranis chamavam o
feijão preto de comanda, comaná ou cumaná.
O outro ingrediente sempre presente na farofa que lhe serve
de acompanhamento, a farinha de mandioca também foi um cultivo indígena e de muito
fácil acesso, a ponto de fazer parte da alimentação tanto dos índios, quanto
dos africanos e dos europeus no Brasil.
Roças de feijão e de mandioca eram encontradas em diversos
locais, como em torno das residências, especialmente das residências mais simples.
O feijão era um alimento de tão fácil acesso que fazia parte
da alimentação dos escravos, na sua forma misturada com farinha de mandioca –
embora alguns sustentem que a alimentação dos escravos nas senzalas era
unicamente água com farinha de mandioca.
O prato em si é apenas uma derivação dos pratos europeus que
tinham como base um caldo rico em sabor, onde ser cozinham a carne e outras
partes dos animais, como pé e orelha de porco. Essa história pode ser traçada
até milênios atrás. Segundo Câmara Cascudo, no Império Romana, na região do
mediterrâneo, existiam pratos similares e prova disso são os diversos pratos
latinos que seguem essa receita básica: cozido, em Portugal; cassoulet, na
França; paella, na Espanha; casouela, na Itália.
Ao se utilizar feijão preto, partes de suínos, linguiça, a
farofa de farinha de mandioca e os acompanhamentos à base de legumes e
verduras, nasceu a feijoada.
Mas Carlos Alberto Dória entende que a feijoada é derivada
de outro prato, o chamado “feijão gordo”. Este, seria um ensopado de feijão,
toucinho e carne seca. Ao se acrescentarem linguiça, legumes, verduras e partes
do porco, o feijão gordo assim enriquecido se tornou a feijoada.
Aliás, a antiga descrição da feijoada como prato originado da
cozinha das senzalas caiu por terra quando Câmara Cascudo confrontou essa tese
com o fato de que grande parte dos escravos trazidos da África era de religião
islâmica, portanto proibidos de consumir carne de porco.
O prato completo, na forma como o conhecemos, foi criado em
meados do século XIX, incluído no menu de restaurantes caros, reservados à elite.
Passo seguinte, chegou aos hotéis e às pensões.
No século XX, finalmente, a feijoada alcançou o patamar de identidade
nacional pelas mãos dos artistas modernistas, sedentos de símbolos que
representassem a antropofagia como método de formação da brasilidade (a fusão
de elementos culturais de diferentes locais do mundo). Mário de Andrade
inclusive usou uma cena de festa, em Macunaíma, para apresentar a cozinha
brasileira e diversas outras que nos influenciaram.
Por fim, foi no bairro da Cidade Nova que o samba se encontrou
com a feijoada para nunca mais se desgrudarem. Fundamental foi o papel exercido
pelas “tias” do samba: organizavam festas cujos atrativos eram o feijão, o
samba e a cachaça. Esse fato está expresso em letras de sambas como “No pagode
do Vavá”, de Paulinho da Viola:
“Domingo, lá na casa do
Vavá
Teve um tremendo pagode
Que você não pode
imaginar
Provei do famoso feijão
da Vicentina
Só quem é da Portela é
que sabe
Que a coisa é divina
Tinha gente de todo
lugar
No pagode do Vavá
Nego tirava o sapato,
ficava à vontade
Comia com a mão
Uma batida gostosa que
tinha o nome
De doce ilusão
(...)”
A Tia Vicentina era irmã de Natal da Portela, bicheiro e
patrono da Escola de Samba presente em seu agnome. Impossível não pensar nas
famosas Tias da Praça Onze, que inspiraram as alas das baianas e que cozinhavam
quitutes muito apreciados.
Uma receita bem famosa de feijoada foi descrita por Vinicius
de Morais no seu apetitoso “Feijoada à Minha Moda”:
“Amiga Helena
Sangirardi
Conforme um dia eu
prometi
Onde, confesso que
esqueci
E embora - perdoe - tão
tarde
(Melhor do que nunca!)
este poeta
Segundo manda a boa
ética
Envia-lhe a receita
(poética)
De sua feijoada
completa.
Em atenção ao adiantado
Da hora em que abrimos
o olho
O feijão deve, já
catado
Nos esperar, feliz, de
molho.
E a cozinheira, por
respeito
À nossa mestria na arte
Já deve ter tacado
peito
E preparado e posto à
parte
Os elementos
componentes
De um saboroso refogado
Tais: cebolas, tomates,
dentes
De alho - e o que mais
for azado
Tudo picado desde cedo
De feição a sempre
evitar
Qualquer contato
mais... vulgar
Às nossas nobres mãos
de aedo
Enquanto nós, a dar uns
toques
No que não nos seja a
contento
Vigiaremos o cozimento
Tomando o nosso uísque
on the rocks.
Uma vez cozido o feijão
(Umas quatro horas,
fogo médio)
Nós, bocejando o nosso
tédio
Nos chegaremos ao fogão
E em elegante
curvatura:
Um pé adiante e o braço
às costas
Provaremos a rica
negrura
Por onde devem boiar
postas
De carne-seca suculenta
Gordos paios, nédio
toucinho
(Nunca orelhas de
bacorinho
Que a tornam em excesso
opulenta!)
E - atenção! - segredo
modesto
Mas meu, no tocante à
feijoada:
Uma língua fresca
pelada
Posta a cozer com todo
o resto.
Feito o quê, retire-se
caroço
Bastante, que bem
amassado
Junta-se ao belo
refogado
De modo a ter-se um
molho grosso
Que vai de volta ao
caldeirão
No qual o poeta, em bom
agouro
Deve esparzir folhas de
louro
Com um gesto clássico e
pagão.
Inútil dizer que,
entrementes
Em chama à parte desta
liça
Devem fritar, todas
contentes
Lindas rodelas de
lingüiça
Enquanto ao lado, em
fogo brando
Desmilingüindo-se de
gozo
Deve também se estar
fritando
O torresminho delicioso
Em cuja gordura, de
resto
(Melhor gordura nunca
houve!)
Deve depois frigir a
couve
Picada, em fogo alegre
e presto.
Uma farofa? - tem seus
dias...
Porém que seja na
manteiga!
A laranja gelada, em
fatias
(Seleta ou da Bahia) -
e chega.
Só na última cozedura
Para levar à mesa,
deixa-se
Cair um pouco da
gordura
Da lingüiça na iguaria
- e mexa-se.
Que prazer mais um
corpo pede
Após comido um tal
feijão?
- Evidentemente uma
rede
E um gato para passar a
mão...
Dever cumprido. Nunca é
vã
A palavra de um
poeta... - jamais!
Abraça-a, em
Brillat-Savarin
O seu Vinicius de
Moraes.”
Como uma última sugestão de preparo, segue a receita mais
modesta trazida por Chico Buarque em “Feijoada Completa”:
“Mulher, você vai gostar:
Tô levando uns amigos
pra conversar.
Eles vão com uma fome
Que nem me contem;
Eles vão com uma sede
de anteontem.
Salta a cerveja
estupidamente
Gelada pr'um batalhão
E vamos botar água no
feijão.
Mulher, não vá se
afobar;
Não tem que pôr a mesa,
nem dá lugar.
Ponha os pratos no chão
e o chão tá posto
E prepare as lingüiças
pro tiragosto.
Uca, açúcar, cumbuca de
gelo, limão
E vamos botar água no
feijão.
Mulher, você vai fritar
Um montão de torresmo
pra acompanhar:
Arroz branco, farofa e
a malagueta;
A laranja-bahia ou da
seleta.
Joga o paio, carne
seca,
Toucinho no caldeirão
E vamos botar água no
feijão.
Mulher, depois de
salgar
Faça um bom refogado,
Que é pra engrossar.
Aproveite a gordura da
frigideira
Pra melhor temperar a
couve mineira.
Diz que tá dura,
pendura
A fatura no nosso irmão
E vamos botar água no
feijão.”
Rubem L. de F. Auto
Fonte: “Almanaque do samba: a história do samba...”
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