Uma das criações tecnológicas que melhor simbolizaram o
século XX foi a televisão. Desenvolvida na década de 1930, na década de 1940 já
era bastante popularizada nos EUA. Até a chegada desse aparelhinho que adquiriu
rapidamente o status de oráculo, o cinema era o principal meio de
entretenimento com as massas, enquanto que o rádio exercia o papel de
comunicador e de meio noticioso.
A primeira imagem televisionada em território nacional foi
registrada em 1935: os cantores Francisco Alves e Marília Batista, acompanhados
pelo regional de Benedito Lacerda, assombraram o público, ainda incrédulo da
possibilidade de “ver” cantores e ouvi-los à distância.
Em 1950, o empresário magnata dos jornais, Assis
Chateubriand Bandeira de Melo, proprietário da cadeia de jornais, revistas e
rádios Diários Associados, resolveu mergulhar nos novos tempos e lançou a TV
Tupi. O Brasil era então o quarto país do planeta a implantar emissoras de TV.
Inicialmente não havia mão de obra especializada naquela
novidade tecnológica. Contrataram-se então os excelentes profissionais do
rádio. De fato, a proto-televisão era nada mais do que o “rádio filmado”.
Contudo, poucos anos depois, os aparelhos de TV seriam o eletrodoméstico mais
popular do país, presente em mais de 90% dos lares.
Ainda nos primeiros anos da TV no Brasil, os concursos de
música faziam muito sucesso no Brasil todo. Principiados em universidades e
teatros, logo ganharam as telas. TV Record, Excelsior, Globo carrearam os
festivais de canções de meados dos anos 1960 até o início da década de 1970 – e
o motivo estava relacionado à proibição pelas Federações de Futebol de
transmissão das partidas aos domingos, temerosos da perda eventual de público
nos estádios; as emissoras precisavam preencher sua grade de alguma maneira.
Foi o período conhecido como Era dos Festivais.
Embora a década de 1960 tenha sofrido um sacolejo político
em 1964, o espírito da busca das mudanças, o desejo de mudar o mundo, a
indignação diante da realidade era algo presente em todo o mundo, independente
da existência de um governo ditatorial sobre suas cabeças. E um dos meios de
mais fácil acesso ao discurso político e uma das mais eficientes maneiras de
fazê-lo chegar às pessoas era por meio da música.
Embora os primeiros festivais tivessem o apelo bossa-novista,
o discurso político já se fazia presente e as denúncias das mazelas sociais,
constantes. Em decorrência de tudo isso, milhares de jovens buscavam avidamente
o ambiente renovador dos concursos musicais, fosse como concorrente, fosse como
plateia.
Aquele dezembro de 1968, quando um infame ato de governo
veio a lume com o deprimente nome de Ato Institucional nº 5, marcou uma mudança
na postura relativamente complacente da sociedade, fazendo com que o
inconformismo atingisse a classe média, estudantes, artistas e intelectuais,
levando-os a se insurgirem contra o governo da caserna.
Multiplicavam-se passeatas, o brocardo repressor “Brasil:
ame-o ou deixe-o” materializava o inimigo a ser combatido. E um dos campos de
batalha foi plasmado na forma dos festivais. A rebeldia, o posicionamento
político crítico de alguns artistas, a emoção extravasada a cada votação do
público, valia tudo para demostrar que, sem liberdade e cidadania, nenhum amor
pelo país seria cultivado.
Se, por um lado, a Bossa Nova alcançou os festivais por sua persistência
cronológica, as músicas de protesto e a tropicália nasceram e floresceram à sombra
dos festivais. Embora bebessem em fontes distintas, em comum, tinham a contestação
de “tudo isso que está aí”.
As músicas de protesto, ou de resistência, ou de engajamento
político, os nomes são muitos, não eram um fenômeno restrito ao Brasil. A
música folk fazia o mesmo nos EUA, especialmente no âmbito dos protestos contra
a Guerra do Vietnã ou das lutas pelos direitos políticos da população negra.
Outro exemplo internacional foi o cantor chileno Victor Jara, assassinado pela
ditadura de Pinochet em 1973. Victor compôs “El derecho de vivier em paz”, em
apoio aos vietnamitas, dentre outras músicas-manifesto.
Seguindo esse estilo de composição, no Brasil, ficaram muito
populares nomes como Geraldo Vandré e Sérgio Ricardo. Geraldo soltou o grito engasgado
na garganta de muitos em sua magistral música “Pra não dizer que não falei das
flores”, segunda colocada no III Festival Internacional da Canção, da Rede
Globo – perdeu para Sabiá, composta por Tom Jobim e Chico Buarque, executada
sob forte vaia da plateia por não refletir a música predileta do público.
Sérgio Ricardo compôs Zelão, um samba que descrevia os sofrimentos de um
morador de uma favela de um morro do Rio de Janeiro. Naqueles anos de busca
desenfreada pelo crescimento econômico e de rejeição oficial do que era
popular, geralmente visto como arcaico, falar de pobreza e de desigualdade era equivalente
a assumir o lado da oposição ao Regime.
Falar de música de protesto sem falar em Chico Buarque é um
erro inadmissível. O samba “Vai Passar” fazia críticas incisivas contra o
Regime, mas seria apenas um detalhe em meio a uma carreira riquíssima. Após
compor as músicas “Olé, olá” e “Madalena foi pro mar”, lançadas em single, ele
compôs seu primeiro sucesso internacional: A Banda. Esse “hit” foi lançado em
1966 no II Festival de MPB e ficou empatada em primeiro lugar com a inquietante
“Disparada”, de Vandré e Theo de Barros. “A Banda” foi inserida no repertório
da Band of Irish Guards para ser executada nas cerimônias de troca da guarda da
Rainha da Inglaterra.
Seu primeiro disco, cujo título era seu nome, apenas, fê-lo
ser chamado por Millôr Fernandes de “única unanimidade nacional”. Na fase
seguinte, Chico inicia uma série de questionamentos de fundo social, portanto
antipáticas ao Regime Militar de então. Quando lança sua peça Roda Viva, que
contava as angústias por que passava um artista de televisão famoso, Ben Silver,
Chico se envolveu em tamanha polêmica que culminou com seu exílio na Itália,
ainda no final da década de 1960.
Seu retorno, em 1970, não marcou qualquer arrefecimento em
seu discurso. Foi quando lançou pérolas como “Apesar de você”, “Geni e Zepelim”,
“Cálice” e tantas outras. Para tanto, Chico inventou um pseudônimo, Julinho da
Adelaide, e assim conseguiu driblar a perseguição que se instalara nos órgãos
de censura contra seu nome.
Se suas composições musicais evoluíam a olhos vistos, seu
poesia galgava novos patamares de excelência: complexas, experimentando métricas
e pontuação, elaborando metáforas brilhantes, Chico ombreia o que há melhor na
poesia e no cancioneiro brasileiro.
Já a Tropicália foi um caso a ser analisado à parte. O
movimento musical se comunicava com diversos outros campos artísticos (como nas
artes plásticas, a cargo de Hélio Oiticica; ou no cinema de Glauber Rocha),
sempre em busca de renovação, sempre criticando o status quo. A Tropicália
buscava aquilo que batizou de “geléia geral”: misturar tudo, o antigo e o
moderno, o erudito e o folclórico, “urbis et orbis”. Foi por ali que a guitarra
elétrica conseguiu penetrar na música brasileira. A antropofagia de Oswald de
Andrade foi levada para a música, mastigou, engoliu e digeriu de Carmem Miranda
a Beatles, passando por Lupicínio Rodrigues e João Gilberto.
Esse fenômeno dava azo às palavras de Oswald no seu
manifesto Antropofágico: “Só a antropofagia nos une. Socialmente.
Economicamente. Filosoficamente... nunca fomos catequizados. Fizemos foi o
carnaval... Antropófagos. Tupy or not tupy, that is the question”.
Os nomes que melhor simbolizaram os tropicalistas foram: Caetano
Veloso, Gilberto Gil, Tom Zé, Gal Costa, os roqueiros dos Mutantes, os poetas
Torquato Neto e Capinam, os maestros Rogério Duprat e Júlio Medaglia, os
artistas plásticos Hélio Oiticica e Rogério Duarte, mas muitos outros foram
arrastados por essa corrente irresistível.
Irresistível, mas de brevíssima duração. Seu início se deu
em 1967, no III Festival da Record, quando Gilberto Gil executou a icônica “Domingo
no Parque”, ao lado do trio dos Mutantes, e quando Caetano cantou seu hino
daquele Brasil, “Alegria, Alegria”, executada ao lado dos roqueiros argentinos dos
Beat Boys.
Já seu fim foi tristemente marcado pela prisão arbitrária de
Caetano e Gil, em dezembro de 1968, dias após a publicação do AI-5.
Mas não se pense que essa sequência de ondas transformadoras
da música brasileira alijou o samba de seu papel fundamental. Tanto a
tropicália quanto os hippies do singular Novos Baianos ajudaram a difundir não
apenas o gênero musical que estava na gênese de suas canções, o samba, como
popularizaram instrumentos como cavaquinho, bandolim, violão e pandeiro.
Tom Zé, excepcional músico e um dos artistas de destaque da
obra seminal do tropicalismo, o álbum Tropicália ou Panis et Circenses, lançou
em 1974 seu “Estudando o samba”. Álbum experimental, produto de uma pesquisa
profunda sobre estilos rurais e urbanos de samba, sua vendagem só alcançou
cifras expressivas anos depois, especialmente no mercado internacional.
E por falar em samba, ele também teve seu espaço na telinha.
A TV Record organizou a Bienal do Samba em 1968. Ali, concorrentes e convidados
coexistiam na mesma condição. Ouviu-se e cantou-se ali: “Tive Sim”, obra prima
de Cartola cantada por Ciro Monteiro; “Lapinha”, de Baden Powel e Paulo César
Pinheiro e cantada por Elis Regina, que venceu o festival; “Coisas do Mundo”,
de Paulinho da Viola, que recebeu menção honrosa do júri após “sumir” naquele
mar de composições maravilhosas. Chico Buarque, Billy Blanco e Elton Medeiros
também concorreram com composições próprias.
Se essas armas não mataram o “inimigo”, ao menos trouxeram
um tanto de reflexão e orgulho da própria cultura a alguns corações estropiados
pelos embates políticos de antanho.
Rubem L. de F. Auto
Fonte: livro “Almanaque do samba: a história do samba...”
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