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quinta-feira, 6 de setembro de 2018

A GLOBALIZAÇÃO ENGLOBA O GLOBO, MAS PODE NÃO ENGLOBAR A DEMOCRACIA



As imagens que as pessoas formulam em suas mentes quando ouvem a palavra “globalização” variam sobremaneira. Muitos certamente pensarão em produtos de alta tecnologia, cujo fabrico envolve minérios retirados de minas na África ou na América Latina, linhas de produção na China, empresas de tecnologia indianas e assim por diante.

Por outro lado, ao ouvir a mesma palavra, muitos outros pensarão imediatamente em trabalhadores em condições análogas à escravidão na Ásia ou na América Latina, cidades imundas do terceiro mundo que provêm vestidos de alta costura, produtos agrícolas encharcados de agrotóxicos etc.
Mas analisar o fenômeno da globalização sob esse prisma é tão enganoso quanto imaginar que liberalismo é um político dublê de empresário discursando contra programas sociais. Por definição, globalização se refere aos vínculos comerciais e econômicos que interligam nações de todo o mundo. Quanto mais numerosas e intensas elas são, mais globalizado se torna o planeta.

E essa intensidade só tem aumentado desde 1492, quando Colombo desembarcou no Caribe e descobriu a América... para os europeus. Mas o fenômeno em si preexistia: a própria expedição de Colombo se deu no contexto das grandes viagens de navegação que tinham como objetivo chegar à Índia, com vistas a restabelecer o comércio entre Europa e Oriente, que se dava com o intermédio de comerciantes árabes. A Rota da Seda já era um ótimo exemplo de globalização.

Após a integração da África e da América no comércio internacional capitaneado por nações europeias, a globalização decolou, o comércio se tornou cada vez mais global. Mas a grande maioria das pessoas só teve contato com o termo na década de 1980. A queda (ou derrubada?) do Muro de Berlim e o consequente sepultamento da Guerra Fria foi apontada como a derrocada do último obstáculo à plena globalização – embora esse argumento pareça ridículo se considerarmos a globalização que existia no outro hemisfério.

Alguns poderiam arguir: tudo bem, mas somos a primeira geração a usufruir de um intenso, rico e volumoso comércio internacional. Também não: esse título pertence o período histórico liderado pela Inglaterra vitoriana, que perdurou por grande parte do século XIX. John Maynard Keynes, um dos nomes mais importantes do século XX e economista que revolucionou a ciência econômica, descreveu assim o período aqui em foco, em artigo de 1914:

“O morador de Londres podia encomendar pelo telefone, enquanto saboreava seu chá matinal, diversos produtos do mundo todo, aguardando sua entrega rápida em sua casa; ao mesmo tempo, e pelo mesmo meio, podia aventurar-se nos recursos naturais e em novos empreendimentos feitos em qualquer parte do planeta, colhendo... seus frutos e vantagens posteriores...”.

Mas esse mundo mágico descrito por Keynes teve um fim dramático. A I Guerra Mundial, seguida por um mundo que repelia a integração e se lançava rapidamente em leis protecionistas, que não apenas originaram, mas agravaram a Grande Depressão Econômica de fins da década de 1920, desarranjaram completamente o comércio internacional e ergueram barreiras quase intransponíveis à imigração de pessoas – diga-se, contudo, que o período da II Guerra Mundial causou um dos maiores movimentos migratórios da história da humanidade, ainda que se incluam nesse número milhões de vítimas de perseguições movidas por nacionalistas, fascistas e nazistas.

Não é à toa que todas as medidas tomadas por governos de todo o mundo que lembram políticas adotadas no período acima citado sejam seguidas por críticas que fazem analogias entre ambos os períodos históricos.

A globalização tem diversos pressupostos. Alguns deles são:
1.     Livre Comércio: trata-se de reduzir alíquotas cobradas sobre mercadorias importadas/exportadas e de revogar barreiras legais ao intercâmbio comercial. Ao reduzir os obstáculos à exportação de mercadorias a partir de seu solo na década de 1980, a China inundou o planeta com mercadorias baratas, que se beneficiavam de salários relativamente muito baratos seguindo os padrões daquela época.
2.   Terceirização: quase que uma consequência direta do que foi descrito acima, diversas empresas de todo o mundo desenvolvido (países de alto custo de produção) transferiram suas linhas de produção e escritórios comerciais para países em desenvolvimento (países de baixo custo de produção). Fábricas se mudaram para o México ou a China; Call Centers foram fechados nos EUA e reabertos na Índia (em função de sua história colonial, abundante em profissionais que falam inglês fluentemente).
3.   Tecnologias: duas tecnologias revolucionaram o comércio internacional. Uma delas foi a “conteinerização”: incontáveis produtos passaram a ser transportados dentro de contêineres, cujas dimensões são padronizadas. Isso possibilitou uma redução dramática do tempo de movimentação das cargas e  reduziu muito o custo. A outra revolução está diretamente ligada à internet. O “boom” das empresas “ponto com” na década de 1990 fez os investimentos massivos em cabos de fibra ótica por todo o globo. Com isso, cidades de todo o mundo passaram a contar com acesso rápido e barato à imensa rede de comunicação que surgia, a internet.
4.   Liberalização: esse item envolve o livre câmbio de capitais, isto é, investimentos. Ao reduzirem barreiras ao investimento externo, companhias de todo o mundo puderam investir em novos mercados, sem tantos os entraves criados anteriormente. Para incentivar esse fluxo de capitais, os governos se encarregavam de reduzir os entraves das leis trabalhistas.
5.   Harmonização jurídica: houve uma aproximação significativa entre as leis de direitos de propriedade e de propriedade intelectual entre os países. Uma patente reconhecida nos EUA é imediatamente reconhecida na China (chamam a isso de Pipeline). Isso reforça a segurança jurídica para a realização dos investimentos. No futuro, planejam-se regras de padronização das mercadorias, para evitar que produtos sejam vendidos a preços irrisórios, porém com uma qualidade tão baixa que põem em risco a vida dos compradores.

Sem sombra de dúvidas a globalização ajudou a reduzir significativamente a pobreza no mundo. Ao criar demanda global para produtos produzidos localmente, a Balança Comercial de diversas nações passou a cumular valores estratosféricos a seu favor. Ao tornar mais interessante os investimentos internacionais, países como China, Índia, Brasil, México receberam um influxo de investimentos que criou parques industriais relevantes globalmente.   

Outro efeito benéfico foi percebido no controle da inflação em escala mundial. Desde 1997 e por mais de uma década, as reduções de custo provenientes da globalização mantiveram os preços das mercadorias exportadas em constante queda, mantendo a inflação do mundo nas rédeas.
Muitos economistas apelidaram o período que se estende 1992 a 2007 como a “Grande Estabilidade”: produto aumentando rapidamente, inflação baixa e constante. De fato, a esse período se seguiu uma crise financeira devastadora (a maior desde 1929), mas as razões para tal estão mais ligadas aos mercados financeiros e de capitais do que à globalização comercial.

Evidentemente a globalização tem sua face mais assustadora. Todas as reuniões entre chefes de nações cujo objetivo é discutir regras ligadas à globalização são acompanhadas de muitos protestos e confusões. A reunião da OMC em Cancun em 2003 teve como ponto trágico o suicídio de um agricultor sul-coreano que protestava contra a retirada pelo seu governo de subsídios à agricultura (pois é, livre comércio, liberalização, harmonização jurídica, blá blá blá).

No meio acadêmico, multiplicam-se os nomes de intelectuais que engrossam as fileiras antiglobalização: Naomi Klein (The Shockwave Doctrine, modo como ela se refere às políticas econômicas neoliberais inauguradas por Pinochet, no Chile), Joseph Stiglitz (ex-chefe do Banco Mundial e desde então ferrenho crítico da abertura de mercados como receita para a redução da pobreza), Noam Chomsky (crítico do governo dos EUA desde as passeatas pelos direitos civis, na década de 1960). Todos eles identificam os movimentos globalizantes atuais como produto das teorias neoliberais.

Uma das principais críticas que se fazem contra a globalização diz respeito ao seu aspecto econômico. Os críticos alegam que a globalização aumentou significativamente a riqueza mundial, mas nem de longe houve uma justa divisão dessa riqueza. Com efeito, a distância entre nações desenvolvidas e em desenvolvimento é o mais alto desde 1930. Além disso: raríssimas nações ascenderam ao grupo das nações ricas após a intensificação da globalização.

Outra crítica bastante pertinente diz respeito às condições de trabalho de inúmeros trabalhadores de indústrias voltadas à exportação, localizadas em países em desenvolvimento. Fábricas de calçados, roupas e acessórios empregam pessoas em condições de trabalho que seriam consideradas criminosas nos países que geralmente consomem os produtos assim fabricados. Se a produção ainda fosse local, as leis trabalhistas não permitiriam o emprego de pessoas em tais condições.

Por fim, o aspecto cultural também não é ignorado. A globalização levou a uma preponderância de marcas e empresas globais, que se impõem sobre produtores e marcas locais, expulsando assim do mercado pequenos produtores e comerciantes, muito importantes em conjunto na geração de emprego e na aplicação de seus capitais nas próprias comunidades onde estão inseridos.

Outro importante e bastante polêmico aspecto da globalização diz respeito à democracia. Políticas liberalizantes têm sido tomadas em todo o mundo sob governos bastante autoritários, quando não declaradas ditaduras, a exemplo de Pinochet. Em geral, a inexistência de um regime democrático não é barreira para que medidas de mercado sejam adotadas – aliás, governos autoritários podem ser fomentados com vistas à tomada de medidas simpáticas ao mercado (de produtos físicos, de serviços, financeiro ou de capitais). Isso tem sido uma constante no terceiro mundo, onde as sociedades repelem mais intensamente mudanças bruscas no manejo da economia.

Mas é facilmente perceptível que as sociedades têm se enriquecido com as possibilidades comerciais a cargo da globalização. O próprio enriquecimento das classes médias podem ser um incentivo à democratização de nações.

O jornalista norte-americano partidário do liberalismo e advogado do livre mercado Thomas Friedman, autor do manifesto liberal “The World is Flat”, defendia que o aumento dos laços internacionais, necessários para atar mais fortemente os vínculos econômicos entre países, daria fim de vez às guerras. Ele defendeu literalmente que dois países que sediassem lojas do McDonald`s nunca entrariam em guerra. Ledo engano: Rússia e Geórgia entraram em guerra em 2008 e invalidaram a argumentação de Friedman.

Além disso, o estouro da I Guerra Mundial deu fim a uma era de muito bem sucedida globalização. E esse cenário ainda causa calafrios nos observadores mais atentos...


Rubem L. de F. Auto

Fonte: livro “50 Ideias de Economia que você precisa conhecer”

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