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sexta-feira, 28 de setembro de 2018

PROTECIONISMO: A INSTITUIÇÃO PARA SUA PROTEÇÃO



Nos EUA, na década de 1980, o temor dos norte americanos era o Japão, país cada vez mais predominante no comércio internacional. A resposta veio na forma de um episódio cômico: congressistas convocaram uma conferência de imprensa na escadaria do Senado e quebraram um rádio Toshiba, símbolo da “ameaça” nipônica.

Na década de 1990, o temor político era a debandada de empregos em direção ao sul, após a remoção de barreiras alfandegárias no comércio com o México.

Nos anos 2000, ficou famosa a decisão do Legislativo dos EUA impedindo que uma empresa chinesa adquirisse uma petroleira norte americana; além de impedirem que investidores do Oriente Médio comprassem uma grupo portuário.

O protecionismo é caracterizado como a imposição de barreiras e impostos a produtos importados e à aquisição de companhias nacionais por grupos estrangeiros. Trata-se de fenômeno de longa data: o comércio é quase tão antigo quanto a imposição de tarifas alfandegárias.

No mundo moderno, as ferramentas protecionistas são variadas: cotas por quantidades ou valores, subsídios a produtores (a União Europeia é prolífica neste método), subsídios a exportadores, manipulação das taxas de câmbio e muita burocracia.

A Crise de 2008 revelou outra técnica protecionista: bancos somente poderiam emprestar a residentes no próprio país. Se, por um lado,  o primeiro-ministro Gordon Brown chamou-a de “mercantilismo financeiro”, por outro ele incentivou bancos ingleses a fazerem o mesmo.

Apesar de a realidade apresentar um quadro bastante diverso, os políticos geralmente pregam em seus discursos serem contra o protecionismo, a favor do livre comércio, dizendo que barreiras ao comércio empobrecem todo o país (e os eventuais parceiros comerciais impedidos de venderem seus produtos nesses mercados) e ainda criam problemas diplomáticos que podem levar a guerras.

A crítica é amparada pela teoria das vantagens comparativas: ao se especializarem em dados produtos e serviços, todo o país prospera.

Mas o jogo político é mais complexo: se dada fábrica nos EUA não consegue mais competir por preços com seus concorrentes, um economista liberal recomendaria que a mesma fosse fechada. Já um protecionista recomendaria aumento de tarifas de importação, ou concessão de subsídios, tudo para salvar os empregos em risco.

Certamente o segundo apelo geraria mais benefícios eleitorais; enquanto que o primeiro economista diria que cabe aos trabalhadores despedidos acharem oportunidades de trabalho em outros setores da economia, mais competitivos no mercado internacional.

Os benefícios advindos do livre comércio puderam ser testemunhados após a Rodada Uruguai de conversações multilaterais na OMC, no início dos anos 1990. Esse acordo ajudou a impulsionar o comércio mundial na década que se seguiu. Contudo, durante a Rodada Doha, de 2001, desavenças surgidas entre, de um lado, China, Índia e Brasil, de outro os EUA, que pretendiam reduções significativas nos seus subsídios agrícolas, travaram as conversas e os benefícios que poderiam beneficiar a economia mundial.

A implantação de barreira protecionistas pode ser enganosa no curto prazo: o aumento das tarifas geralmente aumenta a arrecadação do governo, além de melhorar o Balanço das empresas domésticas, que passam a vender mais.

Entretanto, no longo prazo, os países costumam se deparar com perda do crescimento econômico. E o motivo é icônico na história mundial.

Na década de 1930, em meio à Grande Depressão, o soerguimento de barreiras comerciais foi a regra. Essa políticas receberam o apelido de “empobreça seu vizinho”. O mal-estar provocado entre as nações foi um dos motivos que levaram o mundo a descambar na II Grande Guerra. Como disse o economista francês do século XIX Frédéric Bastiat: “Quando as mercadorias não conseguem cruzar fronteiras, os exércitos o fazem”.

Após aquele conflito, as barreiras erguidas nas décadas precedentes começaram a ser demolidas. As vantagens comparativas voltaram à ordem do dia e o mundo entrou em crescimento acelerado, especialmente nas décadas de 1950 e 1960.

Outro exemplo muito citado é a própria China, uma economia rica e pulsante no século XV, a mais avançada do mundo, que entrou num período de fechamento quase absoluto. O resultado disso foi o empobrecimento e o esgarçamento do país, que somente retornou à tona no final do século XX, quando de seu retorno ao comércio entre nações.

Os temores atuais decorem da crise de 2008. Diversos países lançaram mão do expediente protecionista com vistas a recuperarem suas economias. Caso a onda de protecionismo se espalhe, as consequências para a economia mundial serão mais decisivos do que uma eventual depressão ou mesmo uma deflação ligada ao aumento da dívida pública.


Rubem L. de F. Auto

Fonte: livro “50 Ideias de Economia: que você precisa conhecer”

quinta-feira, 27 de setembro de 2018

MASTERCHEF, COM ALEXANDRE DUMAS – OS TRÊS COZINHEIROS DE MONTE CRISTO



Por volta de 1850, o imortal escritor francês Alexandre Dumas, autor de obras antológicas como Os Três Mosqueteiros, O Conde de Monte Cristo, As Aventuras de Robin Hood, dentre muitos outros (seu filho foi o autor de A Dama das Camélias), estava falido. Construíra um palácio delirante, o Castelo de Monte Cristo, investiu num poço sem fundo, o Teatro Historique, e já estava bastante desiludido com a literatura – a despeito da fortuna que amealhou com o sucesso de seus livros.
Foi então que resolveu mudar o rumo de sua carreira. Passou a se dedicar à coleta de material para uma obra sobre culinária – a cozinha francesa reinava sozinha no mundo da alta gastronomia no século XIX.

Dumas desejava vida perene a sua obra culinária, e de fato assim o fez: o Grande Dicionário de Culinária se tornaria uma das duas maiores obras do gênero escritas na França, consagrando-se ao lado de A Fisiologia do Gosto, de Brillat-Savarin.

A história abaixo abre o livro e se trata de testemunho vivido pelo próprio autor, sob o título: Ao Fogão com Dumas.


“Oh, mar, único a que fui fiel!” Estes versos de Byron poderiam ser minha divisa: gosto do mar como item indispensável ao prazer e mesmo à felicidade de nossa existência. Quando fico sem ver o mar por muito tempo, sou atormentado por um desejo irresistível, e, sob um pretexto qualquer, pego um trem e vou para Trouville, para Dieppe ou para Havre. Naquele dia, fui para Fécamp.

Mal cheguei, vieram convidar-me para uma pescaria no dia seguinte. Conheço essas pescarias, não se pesca nada, em geral compra-se o peixe que compõe a base do jantar posterior à pescaria. Daquela vez, porém, contrariando a rotina, pegamos duas cavalas e um polvo, mas compramos uma lagosta, um linguado e uma centena de camarões. Um catador de mexilhões que encontramos no caminho contribuiu com centenas desses bivalves.

Discutimos longamente para decidir na casa de quem seria o jantar, a escolha recaindo em um grande comerciante de vinhos de Fécamp, que colocara sua adega inteira à nossa disposição. No caminho o sujeito nos garantiu que sua cozinheira já estava preparando um caldo e que na casa dele encontraríamos material para dois ou três pratos, cujos elementos a moça deveria ter reunido.

Ocorre que a cozinheira, por mais cordon bleu pudesse ser, foi exonerada por unanimidade e eu, eleito em seu lugar. Se lhe aprouvesse, que conservasse o título de vice-cozinheira, mas sob a condição de não ousar apor-se ao cozinheiro-em-chefe.

Que agora as donas de casa que desejem acrescentar dois ou três pratos desconhecidos ao seu repertório culinário façam o favor de entrar comigo nessa cozinha admiravelmente aparelhada e não perder nenhum detalhe do que vai acontecer. Como nos haviam prometido, encontramos um caldo de panela desde as 10 da manhã, o que representava quase oito horas de cozimento; com oito horas de cozimento, decerto já atingira a maioridade. Repito sempre que a França é o único país que sabe preparar um caldo, sendo inclusive provável que minha concierge, que não faz nada a não ser viver a vida e puxar a cordinha, tome uma sopa melhor que Mr. Rothschild.

De volta à nossa cozinheira, ela estava então com seu caldo crepitando, duas galinhas ainda com penas aguardando o espeto, um rim de boi ignorando ainda em que molho seria introduzido, um feixe de aspargos começando a germinar e, no fundo de uma cesta, tomates e cebolas brancas.
Espalhei tudo na bancada da cozinha, pedi pena e tinta e montei o seguinte cardápio para aprovação dos meus convidados:

Sopa:
Sopa de tomate com caudas de camarão

Entradas:
Lagosta à americana
Linguado ao molho normando
Cavalas a la maître d`hôtel
Rins salteados no champagne

Assados:
Duas galinhas no barbante
Polvo Frito

Entremets:
Tomates à provençal
Ovos mexidos no suco de camarão
Pontas de aspargos
Corações de alface à espanhola, sem azeite nem vinagre

Sobremesas de frutas
Vinhos
Café:
Bénédictine/Champagne fino

Montei, como ia dizendo, esse cardápio, que foi escolhido com um urra de entusiasmo; apenas me perguntaram quanto tempo esse jantar levaria para ficar pronto. Pedi hora e meia, surpreendentemente concedidas. Achavam que eu precisaria de três.

O grande talento do cozinheiro que quer ser pontual reside em preparar antecipadamente e ter à mão todos os acessórios de seus pratos – coisa de 15 minutos. Porém, como é impossível fazer andar com a pena uma sopa, quatro entradas, dois assados, dois entremets e uma salada, permitam-me explicar-lhes meu serviço prato a prato.

·         Sopa de tomate com caudas de camarão: Acenda 2 bocas do fogão ao mesmo tempo: na primeira, ponha água salgada para os camarões, 1 buquê de ervas (buquet garni), 2 rodelas de limão, ferva e jogue os camarões nessa água em ebulição; na segunda, 12 tomates sem as sementes, 4 cebolas grandes cortadas em rodelas, 1 pedaço de manteiga, 1 dente de alho, 1 buquê de ervas.

Cozidos os camarões, retire-os, escorra-os na peneira, reserve sua água, descasque os camarões e ponha as caudas à parte. Cozidos os tomates e cebolas, passe-os na peneira fina, volte com eles ao fogo enriquecidos com 1 pedaço de glace de viande e 1 pitada de pimenta-vermelha e deixe engrossar até virar um purê.

Adicione o mesmo volume de caldo, bem como ½ copo de água em que os camarões foram cozidos; deixe que tudo se misture ao ferver; na terceira ou quarta fervura, junte as caudas de camarão, e a sopa estará pronta.

Não preciso dizer que, não obstante eu tenha dado a receita individual de cada item, convém fazer tudo ao mesmo tempo.

·         Lagosta à americana: Dentre os diferentes métodos adotados para preparar a lagosta americana, escolhemos o método Vuillemot. Pedimos toda a atenção de nossos leitores e sobretudo de nossas leitoras, por ser o prato bem complicado.
1-      Disponha em uma caçarola 2 cebolas grandes cortadas em quatro, 1 buquê de ervas, 2 pedacinhos de alho, acrescente 1 garrafa de um bom vinho branco, ½ copo de conhaque comum, 1 concha de um bom consomê, sal, pimenta moída grosseiramente e alguns grãos de boa pimenta da Espanha. Introduza as lagostas, ½ hora de cozimento é o bastante. Calma! O mais difícil está por fazer.
2-      Deixe o crustáceo esfriar no caldo de cozimento, se não se estiver com pressa; quanto menos se apresentar, melhor será. Retire a carne da lagosta e corte-a em tiras, incluindo o carnudo das patas; ponha tudo em um prato fundo, regue com um pouco do caldo onde cozinhou a lagosta, cubra com um papel untado de manteiga e reserve aquecido na estufa. Não sirva ainda.
3-      Pegue 8 bonitos tomates, corte-os em dois, extraia a parte aquosa, dispense-a, jogue manteiga na panela e arrume os tomates por cima, temperando com sal, pimenta grosseiramente moída, um pouco de pimenta e manteiga fresca; leve ao forno; depois do cozimento, mantenha-os aquecidos.
4-      Corte 2 cebolas grande em cubos, comprima-as em um pano de prato para extrair o glúten; faça-as saltear em uma panela com um pouco de manteiga, deixe-as alourar, acrescente 1 colher de sopa de farinha; regue com metade do caldo do cozimento da lagosta, deixe apurar o molho em um canto do fogão, reduza-o à metade acrescentando 4 colheres de purê de tomate, reduza, reduza ainda em 1/3 com a glace de viande, depois passe o molho na peneira, acrescente um pouco de suco de limão, uma noz de manteiga fresca, e aguarde.
5-      Pegue então a carapaça da lagosta, ovos, se os há, e pile tudo com um pouco de manteiga; passe na peneira, acrescente 1 grão de pimenta, arrume os filés de lagosta em coroa em uma travessa para legumes, os tomates por cima, despeje a manteiga de lagosta nas cavidades formadas pelos filés, cubra com o suco de carne e sirva.

Este prato, um pouco complicado, não deve ser executado por novatos; para ataca-lo, é preciso ser cozinheiro ou cozinheira com certa tarimba.

·         Linguado ao molho normando: Arrume seu linguado em uma travessa de prata, unte-a com manteiga, tempere com sal, pimenta, 1 copo de vinho branco e leve ao forno. Coloque um pedaço de manteiga na panela, mexa até dourar; um pouco de farinha. Junte a manteiga e o vinho branco do linguado, para o qual você deixou justo o necessário para que não ressecasse; reduza-o à metade.

Cozinhe uns 30 mexilhões, 10 ou 12 champignons. Despeje o suco dos mexilhões no molho; reduza tudo à metade, engrosse com 4 gemas e ½ copo de creme fresco, arrume os mexilhões e os champignons em volta do peixe; cubra com o molho.

Alguns pedacinhos de manteiga aqui e ali, deixe o peixe no forno por uns 2 minutos e sirva.

·         Cavalas e rins: Em relação às cavalas e aos rins, nada tenho a ensinar sobre esses dois pratos. É o ABC da cozinha. Apenas faça o molho dos rins e, maior quantidade e reserve ½ copo à parte, no momento de servir, a fim de que o molho fique o mais completo possível. Você verá por que adiante.

·         Galinhas no barbante: Até o momento de executar minhas galinhas no barbante, fui vítima das observações da minha vice-cozinheira; porém, chegada a hora decisiva, as observações viraram oposição. Sem tempo a perder, ameacei-a com um golpe de Estado que consistiria em indenizá-la e botá-la porta afora. A ameaça fez efeito, ela obedeceu passivamente e, cinco minutos depois, minhas duas galinhas giravam lado a lado, como dois fusos.

Mas como hoje disponho de tempo para lhes dar minhas razões e explicar a superioridade da galinha no barbante sobre a galinha no espeto, ouçam-me. Todo animal tem dois orifícios: o superior e o inferior, e a galinha, sob esse aspecto, é igual ao homem. Diógenes disse-o 2.400 anos antes de mim, no dia em que lançou um galo emplumado na ágora de Atenas, proclamando: “Eis o homem de Platão!”

Você tirou, quando digo você tirou quero dizer sua cozinheira tirou, os intestinos e o fígado, jogou fora os intestinos, picou o fígado com fines herbes, cebolinha e salsa, besuntou tudo com um pedaço de manteiga e, no luar dos intestinos, doravante não apenas inúteis como daninhos, reintroduziu esse picadinho destinado a perfumá-lo.

Qual deve ser agora o objetivo do cozinheiro? Conservar, do animal por ele cozinhado, a maior quantidade de essência possível. Ora, se lhe atravessar um espeto ao comprido e, para firmá-lo, uma brochete lateral, em vez de tampar um dos dois orifícios com que a natureza o aquinhoou, você lhe imporá dois outros pelos quais toda a essência vai escapar. Porém se, ao contrário, pendurá-la verticalmente com esse barbante, deixando o orifício inferior livre e o superior tampado; se, com excelente manteiga fresca, misturada a sal e pimenta, regá-la, tendo o cuidado de introduzir a manteiga no orifício inferior com a colher de regar – então você terá cumprido com todas as condições lógicas para obter uma excelente galinha. Resta-lhe então apenas vigiar o cozimento e cortar o barbante que a sustenta, hora de fazer alguns buraquinhos em sua pele, de onde é expelido um jato de fumaça. Coloque-a então em uma travessa e despeje sobre ela o suco da pingadeira.

Sobretudo, que jamais uma gota de caldo misture-se à manteiga que deve regar sua galinha; toda cozinheira, não canso de repetir, que coloca caldo em sua pingadeira merece ser posta na rua ignominiosamente e sem misericórdia.

·         Polvo frito: Quanto ao polvo frito, é simples como qualquer peixe, badejo ou linguado: corte-o em pedaços, passe-os na farinha, frite no óleo quente, retire na hora certa e você terá algo parecido com orelha de vitela frita, com um ligeiro gosto de almíscar.

·         Ovos mexidos e tomates recheados à provençal: A infância da arte: quebre 12 ovos em uma sopeira, deixando apenas 6 claras para as 12 gemas; acrescente, depois de os ter batido, um pedaço de manteiga, fines herbes, ½ copo de caldo de consomê (de galinha, se tiver) e abandone tudo aos cuidados da cozinheira, que só terá de colocar na panela, levar ao fogo e mexer.

Recomendação capital: servir moles os ovos mexidos, continuando a cozê-los no prato. Quanto aos tomates, corte-os em dois, retire a parte aquosa, descarte as sementes e leve-os ao forno, enfiando, no vão de cada um, uma pirâmide composta de um picadinho de galinha, vitela, caça da véspera, se tiver, e champignons.

Despeje sobre eles 1 copo de azeite, do melhor que puder encontrar; em seguida, polvilhe com sal, pimenta, salsa e alho picados junto; acrescente uma pontinha de pimenta-vermelha; cozinhe entre 2 fogos, regando 3 ou 4 vezes suas pirâmides de carne com o azeite em que os tomates assaram.

·         Salada de corações de alface: Nossa salada de corações de alface, sem azeite ou vinagre, é um souvenir de nossa viagem à Espanha, onde o vinagre não tem gosto de nada, ao passo que o azeite empesteia. Impossível, por conseguinte, comer salada quando o calor do céu e a secura do ar lhe dão apetências violentas de ervas frescas. Bem, remediamos isso substituindo o azeite por gemas e o vinagre por limão. Esta mistura, suficientemente sustentada por sal e pimenta, dava-nos uma salada delicada cujo sabor acabamos preferindo ao das saladas francesas. Ao fim de uma hora e meia, o jantar estava servido; mas quatro horas depois ainda estávamos à mesa! Assim, qual não foi a reputação que deixei em Fécamp, e como fui recebido da última vez!

Permita-me acrescentar ainda uma receita que poderia perfeitamente vir depois destas sem sentir-se deslocada:
·         Ovos mexidos no suco de camarão: Pegue 12 ovos, quebre-os, mas reserve em uma tigela todas as gemas e apenas 8 claras, visto que o excesso de claras tira a delicadeza do prato. Ponha para ferver em uma caçarola à parte os corpos dos camarões com 1 copo de chablis. Dê 2 ou 3 fervuras e despeje tudo em seguida no alguidar para fazer um purê, o qual você passará na peneira fina para retirar o mínimo vestígio de carapaça. Desmanche essa espécie de papa nos ovos previamente temperados com sal e pimenta e ligeiramente incrustados com cebolinha e salsa picadas bem miudinho. Junte as caudas de camarão, bata com os ovos e despeje tudo na frigideira com manteiga fresca; cozinhe e transfira para um prato com muito jeito.



Rubem L. de F. Auto

Fonte: livro “Grande Dicionário de Culinária”

quarta-feira, 26 de setembro de 2018

DOWNFALL OF EMPIRES: O ORIENTE MÉDIO NO XADREZ DA GEOPOLÍTICA



Controlar regiões ricas em minérios faz parte do beabá de todos os impérios desde o surgimento do primeiro que se fez digno desse nome. Os romanos tomaram a região correspondente à atual Grã-Bretanha, a Província da Bretanha, em busca do estanho e da prata, ali abundantes. Foi o ouro que atraiu os mesmos romanos para a região do atual Portugal, na época Província de Portugália. Também foi o ouro que atraiu os conquistadores espanhóis para a região do atual Peru, no século XVI. Esse mesmo ouro levou os britânicos a invadirem o Transvaal africâner no século XIX, correspondente a parte da atual África do Sul.

E em todos esses casos, a cultura do invasor vencedor se fez presente e influenciou sobremaneira a cultura local.  

É por razões que têm esse aprendizado como fundamento que a atuação dos EUA no Oriente Médio é revestida de um inegável caráter imperialista. Afinal, o interesse na riqueza mineral local é óbvio: petróleo, o ouro negro, o sangue que irriga o mundo industrializado; ao mesmo tempo, o interesse em mudar a cultura prevalecente na região, notadamente sob o aspecto político, faz parte do discurso de Washington há muitas décadas. Petróleo-democracia, parece ser esse o binômio que “justificou” a atuação imperial dos EUA no Oriente Médio desde o início.

Caso seja realmente esse o motivo balizador, então os resultados devem ser considerados, no mínimo, desastrosos. Um claro caso de política muito mal sucedida. Se na década de 1950 petroleiras dos EUA eram praticamente detentores dos infindáveis campos de petróleo naquela região, as seguidas nacionalizações posteriores praticamente expulsaram aquelas companhias, em geral partindo de governos abertamente antiamericanos.

Os critérios da Freedom House permitem que somente Israel e Turquia sejam qualificados como democracias, dentre os 15 países da região. Em 1950 essas mesmas nações assim seriam classificados, contudo Egito, Irã, Líbano e Síria estavam mais perto de uma democracia do que atualmente.

Por esses motivos, diversos líderes ocidentais mostraram ver a política para o Oriente Médio como uma reedição das Cruzadas na era Medieval. Se, por um lado, não soe moralmente aceitável, muito menos ético, declarar uma guerra, um choque de civilizações em lugar de uma diplomacia civilizada; por outro, revela-se aí uma importância tal que a perda de influência sobre a mesma, já no início da década de 1970, era impensável.

Antes de 1950, a presença norte americana no Oriente Médio era meramente acadêmica, ainda que motivada por razões estratégicas. Diversas instituições de educação americanas, como universidades com campus no Cairo e em Beirute, além do Roberts College em Istambul, ou o Alborz College no Irã, garantiram sua presença na região.

O papel dos EUA deu um passo adiante em 1946, quando Loy W. Henderson, diretor do Escritório de Negócios Africanos e do Oriente Médio do Departamento de Estado, assim definiu a política americana para o Oriente Médio: “impedir rivalidades e conflitos de interesse na área de se transformar em hostilidades que eventualmente pudessem levar a uma terceira guerra mundial”. Isto é, os EUA se declaravam árbitros “desinteressados” nos eventuais conflitos com que se deparassem, exercendo sua força militar imperial recentemente conquistada ao final da II Guerra Mundial. Mas não passava disso.

Um ano depois, os EUA deram mais um passo adiante para se “assenhorarem” do Oriente Médio, mas foi um golpe do acaso: diante das dificuldades insuperáveis causadas pela trágica II Guerra Mundial, os britânicos decidiram entregar aos EUA o papel que até então exerciam na Turquia – e, consequentemente, na Grécia. Ainda assim, soldados britânicos seriam os mais numerosos na região por mais uma década. Somente após a crise do Canal de Suez os britânicos deixariam de considerar aquela região finalmente fora de sua esfera de influência.

Os primeiros passos dos EUA no Oriente Médio remontam a 1920. Companhias de Petróleo americanas pressionaram suas contrapartes britânicas a abrir-lhes participação na Companhia de Petróleo Turca – mais tarde o “Turca” seria alterado para “Iraquiana”. Essa pressão viria no encalço da descoberta de petróleo em Baba Gugur, em 1927.

Ainda não se poderia prever o papel do Oriente Médio no mundo dali a poucas décadas: em 1940, todo o petróleo saído da região somava apenas 5% do fornecimento mundial do ouro negro. Mas os estrategistas de Washington já estavam convencidos de que o potencial de produção daqueles campos de petróleo era extraordinário.

Foi um arabista britânico, Harry St. John Philby, quem costurou o ingresso dos EUA no Oriente Médio, ao transformar os reinos encabeçados por membros da Casa de Saud numa colônia americana.
Após, diante do esgarçamento britânico, propuseram tornar a Arábia Saudita região de influência unicamente de Washinton, enquanto a Pérsia permaneceria sob a influência britânica; Iraque e Kuwait seriam desfrutados por ambos.

Foi então que se traçaram as linhas gerais que guiariam as relações EUA-Arábia Saudita: armas e dinheiro fluindo para os bolsos sauditas; petróleo e bases militares seguindo o fluxo inverso. A medida seguinte foi a fundação da Companhia Árabe-Americana de Petróleo (a ARAMCO, considerada por muitos a maior corporação empresarial do planeta Terra), desde o início a principal fonte de renda da família real saudita: cerca de metade da receita auferida era enviada aos Saud, livre de impostos.

Quando John Foster Dulles visitou o Oriente Médio, na condição de Secretário de Estado americano, não se conteve e declarou que aqueles  recursos minerais todos eram “vitais para nosso bem estar”.

Por tudo isso é quase incompreensível o apoio americano à fundação do Estado de Israel: nada foi mais eficiente para afastar qualquer possibilidade de apoio ou mesmo de simples simpatia. Menos compreensível ainda se torna se considerarmos que o Departamento de Estado foi contra esse apoio, ainda em 1948. Foi o presidente Harry Truman quem costurou esse apoio, que contra todos os prognósticos cresceu, a ponto de já em 1958 ter se tornado axioma da política externa dos EUA. Um embaixador americano no Egito certa feita declarou: “Israel representa nosso mais antigo interesse na área... A continuação de Israel como um Estado independente certamente representa um compromisso básico da política externa dos Estados Unidos...”.

No compêndio de análises a esse respeito não faltam especulações sobre as motivações de Washington: a influência irresistível no lobby sionista, sentimento de culpa pelo Holocausto, o fato de Israel ser a única democracia por aquelas bandas. Até o crença protestante de que o retorno dos judeus a Israel é um sinal do breve retorno de Cristo é apontada entre as razões.

Seja como for, as discordância entre EUA e Israel também são numerosas. Primeiramente, o apoio costurado por Truman não incluía assistência militar ou bélica. Dulles, que previu a importância fundamental do petróleo saudita para a economia americana, suspendeu diversas vezes o auxílio americano a Israel. Os EUA se pronunciaram contra Israle por ocasião da invasão da Fixa de Gaza e do deserto do Sinai, em 1956. OS EUA não foram capazes de garantir liberdade de passagem aos navios israelenses pelo estreito de Tiran, nos estertores da Guerra dos Seis Dias, apesar de terem prometido na ONU que o fariam.

Poucos anos depois, os EUA defenderam a internacionalização de Jerusalém e criticaram publicamente a colonização de territórios árabes, em 1967, com o fim de torna-los assentamentos de judeus. Os EUA não se manifestaram a favor dos eventos em Gaza e na Cisjordânia.

Por todo o exposto, pode-se afirmar que o motivo preponderante para a entrada decidida dos EUA no Oriente Médio, em 1950, foi outro: medo da URSS! O fim dos impérios europeus, consequência do caos pós-guerra, incutiu o medo de que os russos capitalizassem influência no mundo árabe de maneira tão decidida quanto haviam feito na Ásia.

Mas esse medo era, de certa forma, exagerado. Os russos mostraram muito pouca competência ao tentar atrair o apoio de Teerã e, ao fim, nada conseguiram. Por sua vez, a derrubada do primeiro-ministro iraniano Muhammad Mussadegh, pioneiro do processo de nacionalização de companhias petrolíferas ocidentais e, por consequência direta, pioneiro dentre os políticos árabes derrubados por meio de golpes de Estado patrocinados por Washington, mostrou-se tão bem sucedida que renovou os ânimos por dominar a região.

Essa derrubada ocorreu por meio da operação Ajax. Seu estopim foi a nacionalização da Companhia Anglo-Iraniana de Petróleo. Embora a iniciativa fosse britânica, quem operacionalizou tudo foi a CIA.

O caso do Egito se desenrolou entre idas e vindas surpreendentes. Inicialmente, os EUA apoiaram o líder nacionalista Gamal Abdel Nasser, na altura em meio a turras com os britânicos, exigindo que retirassem sua presença militar da região do Canal de Suez. Contudo, em 1956, Nasser já estava flertando com os russos, além de fazer inflamados discursos visando ao apoio das demais nações árabes.

Em seguida, os EUA se recusaram a financiar o projeto da represa de Assuã. A resposta revoltada de Nasser foi a nacionalização do Canal de Suez. A indignação britânica levou-a a se juntar à França na tentativa desastrada de invadir e tomar à força o Canal do Egito. Faltava apenas um motivo claro, e este veio a cargo de Israel, que invadiu territórios vizinhos, levantando os temores relacionados a uma guerra árabe-israelense. OS EUA cumpriram o aviso antecipado: não apoiaram a aventura neocolonial dos inconformados antigos impérios europeus.  

A invasão anglo-francesa foi respondida pela URSS com a ameaça de uso de armas nucleares. Foi o suficiente para demover os dois europeus, embora alguns sustentem que a razão preponderante foi um surpreendente ataque especulativo contra a libra – sem falar na falta de financiamento da empreitada por Washington.

Foi então que outro evento deixou os analistas ocidentais sem fôlego: Nasser instigou alguns oficiais iraquianos a criarem uma revolta em Bagdá, visando à derrubada do rei pró-britânico Faisal II – ao lado do primeiro-ministro Nuri es-Said. Nem o envio de 15 mil soldados para o Líbano foi capaz de conter aquele movimento.

As consequências foram incalculáveis: o novo governo iraquiano revogou as concessões de exploração de petróleo da Companhia de Petróleo Iraquiana – concessões que remontavam à invasão de 1917.

Para completar o quadro da degringolada ociedental, os sauditas suspenderam as compras de armas dos EUA e avisaram que não renovariam a autorização de funcionamento da base aérea americana em Dhahran.

Impossível não ouvir risadas contidas de Nasser.

Desde a década de 1950, a convivência pacífica entre árabes e israelenses era virtualmente impossível. Para complementar o quadro de entreveros na região, surgiu um fenômeno novo que assustaria boa parte do planeta nas décadas seguintes: o terrorismo.

Não era algo exatamente novo: sionistas radicais tinham usado essa mesma tática para expulsar soldados britânicos da Palestina, ainda na época em que detinham o mandato sobre a governança da região. Agora, eram os palestinos que ameaçavam os israelenses usando-se das mesmas táticas; e o motivo era o mesmo: o desequilíbrio de forças é de tal ordem que um embate militar tradicional está descartado.

Ainda durante as discussões sobre a criação do Estado de Israel, foi posta sobre a mesa a proposta de solução de dois Estados, mas essa era àquela altura uma proposta inaceitável para os árabes. Líbano, Síria, Iraque, Transjordânia e Egito (com o apoio mal disfarçado da Arábia Saudita) partiram para a guerra, com o intuito de sufocar Israel. Mas nada disso ocorreu: o fracasso árabe foi retumbante .
Se Grã-Bretanha e França foram escorraçadas de Suez, Israel, quem deu o motivo para a invasão, saiu-se bem melhor: ocuparam a Faixa de Gaza e o Sharm el-Sheikh, embora essas regiões tenham, sido postas sob controle da ONU, logo após.

Em 1967, movimentações militares pelo Egito deram azo à Guerra dos Seis Dias, fato inflado por declarações de Nasser expressando seu desejo de apagar Israel do mapa. Novamente o desempenho árabe foi sofrível, e Israel contava agora com o Sinais, Gaza e, em represália à Jordânia, que apoiou o lado árabe, a Judeia (o que incluía Jerusalém e Samaria, também chamada Cisjordânia). As colinas de Golã estavam nesse pacote.

Em 1973, o Egito e a Síria se lançaram em mais um ataque a srael: a Guerra do Yom Kippur. O começo foi animador para os árabes, mas nem mesmo o apoio soviético e iraquiano foram capazes de fazer Israel recuar um centímetro que seja.

Tantas vitórias seguidas deram o ânimo que faltava a Israel para, em 1982, invadir o Líbano.
Os EUA, além de não terem sido consultados sobre qualquer dos eventos acima, não viram com muita satisfação as acachapantes vitórias israelenses: segundo Nixon, a região estava virando os Bálcãs antes da I Guerra Mundial – os conflitos insolúveis poderiam levar a um embate direto entre EUA e URSS, ainda que ambas não desejassem isso.

Por exemplo, no confronte de 1973, os EUA apoiaram Israel apenas após terem certeza de que os soviéticos apoiavam o Egito. E foram as duas superpotências que negociaram o cessar-fogo.
No período seguinte, de 1976 a 1985, a ajuda americana a Israel tomou umn fôlego inédito: 25% de toda a assistência militar norte americana tomou o rumo de Israel – cerca de 25 bilhões de dólares, ou 13% do PIB israelense.

Ainda assim, a única concessão que Israel fez a Washington foi atender à súplica de Jimmy Carter para que devolvessem o Sinai, em nome de um acordo de paz com o Egito. Mas quando em 1981 Israel decidiu incluir unilateralmente as colinas de Golã no seu território, Washington ficou ao lado da ONU, condenando essa atitude.

Durante a invasão do Líbano por Israel, os EUA enviaram soldados para as forças de paz, que tentavam impedir Israel. As tentativas de Reagan de resolver os conflitos foram todas embargadas por Israel. Apenas quando Reagan e Yitzhak Shamir acordaram sobre o aumento da cooperação americana para Israel, houve algum acordo sobre os conflitos, em 1983.

Após anos recusando qualquer oferta, em 1988 Yasser Arafat aceitou um acordo bilateral com a Palestina: mas os israelenses mostravam cada vez menos disposição de retornar às fronteiras originais, anteriores a 1967. Os americanos também protestaram contra o assassinato de palestinos que jogavam pedras em soldados israelenses, mas mesmo isso trouxe poucos resultados. O mesmo ocorreu em relação aos assentamentos, que em 1983 já somavam mais de 30 mil pessoas.

Tudo isso ocorreu simultaneamente ao aumento da relevância econômica dos países árabes no mundo. Se Israel estabelecera décadas antes uma superioridade incontestável sobre os países árabes, agora o cenário parecia ficar ainda mais confuso.

Em 1953, os EUA produziam mais da metade do petróleo do mundo; em 1973, produziam apenas 21%. Nos anos 1950, os EUA praticamente não importavam petróleo; em 1977, 46% do que consumiam eram importados – e o principal fornecer era justamente o Oriente Médio.
O pronto positivo era que a renda auferida pelos árabes era quase que integralmente investida em ativos norte-americanos: eram os petrodólares, famosos por irrigarem os empréstimos para os países em desenvolvimento, que seriam plasmados na forma da crise da dívida externa dos anos 1980, após o aumento das taxas de juros internacionais.

Entre 1970 e 1972, as importações de armas produzidas nos EUA pela Arábia Saudita multiplicaram-se por vinte. Já a participação de companhias petrolíferas americanas nos poços sauditas caiu a praticamente zero após a nacionalização da Aramco.

Ainda assim, a importância do petróleo do Oriente Médio é muito mais crucial para os aliados dos EUA, notadamente os países europeus, do que para os EUA. O controle daquela região pela URSS traria o domínio da Europa ocidental pelos soviéticos, o que jogaria a OTAN na lata de lixo da história.

E os resultados de Washington, nesse sentido, foram positivos. Os conselheiros militares soviéticos já tinham quase que totalmente deixado o Cairo já por volta de 1972. Somente mantinham alguns representantes na Síria. Já os EUA eram presença marcante no Kuwait, nos Emirados Árabes Unidos, no Bahrein, no Qatar e em Omã. Já Kissinger conseguiu tanto estabelecer um modus vivendi entre Israel e Egito quanto derrubar o embargo do petróleo saudita aos EUA – episódios conhecidos como a diplomacia da ponte aérea.

Mas as dores de cabeça de Washington não teriam fim, ainda. Muanmar al-Qaddafi, ditador líbio, aproveitou o conflito árabe-israelense de 1967, quando a demanda por pet´roleo líbio aumentou, em face da redução da produção nos países em conflito, para aumentar seus preços. Por fim, nacionalizou as petrolíferas estabelecidas na Líbia.

Em 1973, com o recrudescimento dos conflitos que opunham Israel e árabes, os sauditas, em represália, elevaram o preço do seu petróleo em 70%. Além disso, anunciaram uma redução da oferta aos aliados de Israel em 5% ao mês.

Os EUA enfrentaram a decisão saudita dobrando os repasses a Israel. Os sauditas então anunciaram novo embargo de petróleo contra os EUA. Tudo isso quando o mundo adotava políticas keynesianas para manter o crescimento do PIB. O impacto foi um verdadeiro apocalipse sobre suas economias. Inflação em alta, déficit fiscal indecente, desemprego estratosférico... e piorou! A revolução iraniana de 1979, um dos episódios mais vergonhosos da política externa dos EUA, apresentou um novo ator econômico: a temida estagflação.

A Revolução Iraniana viu a queda do ditador sanguinário e marionete de Washington, o Xá Reza Pahlavi, e sua sucessão pelo líder islâmico radical Ruhollak Komeini, uma espécie de Lênin islâmico. Para se ter uma melhor visão da tragédia americana naquela região, o Irã era o segundo maior país do Oriente Médio, atrás apenas da Turquia. Sua população era o triplo da população do Iraque. Sua produção de petróleo só perdia para a da Arábia Saudita. Em 1973, mais de 10% do petróleo produzido no mundo era iraniana.

A Revolução Iraniana levantou temores em Saddam Hussein de uqe os xiitas iraquianos, a maioria da população, abraçasse o discurso de Komeini e levasse caos para seu território. O resultado foi a guerra Irã-Iraque, que levou Kssinger a revelar seu desejo de que ambos perdessem...

Embora os dois lados fossem declaradamente e radicalmente “anti-yankees”, o lado de Saddam parecia o menos pior: era um governo secular, apenas nacionalista árabe. O mais surpreendente mesmo foi a aula de “maquiavelismo” da diplomacia Reagan, capaz de fazer enrubescerem alguns dos mais detestáveis líderes políticos da história.

Basicamente, Washington vendeu armas e apoiou ambos. Vendeu armas ao Irã, secretamente, com o fim de libertar reféns americanos, que trabalhavam na Embaixada no país quando da revolução; mas também para arrecadar fundos para a invasão americana da Nicaraguá, na América Central. Saddam, por seu turno, recebia créditos e mercadorias que bateram 1 bilhão de dólares em 1989 – e não sofreu qualquer represália por usar armas químicas largamente, nem por atacar um navio militar dos EUA.
A mesma realpolitik foi usada para fornecer apoio aos mujahedins afegãos, com vistas a fazê-los derrotar a URSS no seu próprio Vietnã.

Os anos seguintes veriam negociações fortes para o estabelecimento de bases militares na Arábia Saudita, o fim da presença soviética na região – e no mundo – e a entrada em cena de Osama bin Ladden...  


Rubem L. de F. Auto

Fonte: livro “Colosso” – Niall Ferguson  

sexta-feira, 21 de setembro de 2018

O COSMOPOLITISMO ESTÁ NA RAIZ DO SAMBA: INSTRUMENTOS



Assim como o próprio país em que está inserido, o samba é o resultado de inúmeras contribuições culturais, provenientes das mais diversas culturas. E essa realidade pode ser conferida na origem geográfica dos instrumentos tradicionalmente utilizados na feitura desse gênero musical. Se não vejamos:

1 – Pandeiro: o pandeiro tem origem árabe. Foi levado para a Europa ainda durante a Idade Média e adotado tanto por artistas ambulantes – ao estilo dos trovadores – quanto por diversos músicos de Cortes. O primeiro nome intimamente associado a esse instrumento no Brasil foi o de João da Baiana.
Está presente no choro, em rodas de samba e etc.

2 – Cavaquinho: instrumento com origem portuguesa, também conhecido como braguinha, braga, machete, dentre outros nomes, é utilizado em funções de acompanhamento musical ou em solos.
Tradicionalmente, o choro conta com flauta, violão e cavaquinho, mas se faz presente também no samba. O grande ícone do cavaquinho foi Waldir Azevedo, autor de Brasileirinho, uma das músicas brasileiras mais tocadas em todo o mundo.

3 – Violão: o violão é um instrumento de origem milenar: arqueólogos acharam instrumentos de cordas, com um corpo e um braço, algumas vezes  pontuado com trastes no Egito (que já usava amplamente a Harpa, a qual foi modificada para adquirir a aparência de um violão), na Assíria e em outros lugares da Antiguidade.
A história é um tanto confusa, mas surgiram duas hipóteses: ou seria derivado do instrumento grego khetara que, após as invasões romanas, recebeu o nome latino de cítara (semelhante à lira);ou seria uma evolução do Alaúde, proveniente dos árabes.
Chegaram à Europa medieval por meio da Península Ibérica, convivendo por muito tempo na Espanha.
Com o tempo, a khetara grega deu origem à guitarra latina, enquanto que o Alaúde árabe originou a guitarra mourisca.
No século XVI, esse instrumento ganhou cinco cordas, fato comprovado em uma gravura italiana do período. Tornou-se o instrumento musical predileto na Europa, ganhou afinação Lá-Ré-Sol-Si-Mi, quase a esma dos violões atuais, e recebeu diversos nomes: vihuela (Espanha), rizzio gitarre (França) e guitarra batente (Itália).
Os portugueses desenvolveram desde muito cedo a Viola Portuguesa, semelhante à viola caipira brasileira. Esse instrumento é um pouco menor e muito semelhante à guitarra espanhola. Quando se depararam com o equivalente espanhol, a vihuela, passaram a chamá-la pelo aumentativo de viola: violão.
Somente no século XX tanto os portugueses quanto nós, brasileiros, voltamos a usa o nome guitarra para o violão elétrico.

4 - Violão de 7 cordas: de provável origem russa, tem mais uma corda a mais, afinada em tom grave (daí ser ele mais prolífico nas “baixarias”). Iniciou sua trajetória em solo nacional por meio dos chorões: China e Tute. Mas seu manejador  mais genial foi Dino 7 Cordas. Dentre os apóstolos do grande mestre, deve-se destacar o nome de Raphael Rabello. 
É um instrumento bastante comum no samba contemporâneo.

5 – Cuíca: o nome deita raízes em Angola e no Congo. Acredita-se que foi trazido ao Brasil por africanos de etnia banto, vindos como escravos – mas essa hipótese é controversa, haja vista alguns crerem que foi trazido da Holanda. Assemelha-se a um tambor, preenchido por uma membrana distendida e com uma haste presa à membrana pela parte inferior. É acionado atritando-se a haste, movendo-a com a mão direita.

6 – Banjo: esse instrumento era conhecido em Portugal por bandurra; na Espanha, bandurria. Mas nos EUA, os negros reduzidos à escravidão passaram a chama-lo de banjo. O formato lembra um tambor, com uma membrana esticada, braço longo e cordas.
Tornou-se popular no Brasil no início do século XX, pelas mãos de Gastão Bueno Lobo. No final da década de 1970, Almir Guineto o trouxe de volta a lume, quando o afinou como um cavaquinho e o pôs a ressoar pela quadra do Cacique de Ramos.

7 – Tamborim: foi trazido ao Brasil pelos europeus. E esse fato é comprovado na Carta do Descobrimento, de Caminha. É usada em danças de origem africana, como maracatus e cucumbis. Entrou no universo das Escolas de Samba e de lá não saiu mais.

8 – Surdo: o surdo foi criado no bairro do Estácio, onde surgiram as Escolas de Samba, e logo foi introduzido nas baterias, com a função de marcação de ritmo.

9 – Reco-reco: esse instrumento produz som pelo contato de uma baqueta sobre uma superfície com ranhuras. Também faz arte da bateria das escola de samba.

10 – Agogô: tem origem afro-brasileira e é composto de dois pedaços de metal em formato de sino e que emitem sons diferentes ao serem percutidos por uma vareta de metal. Além do samba, é usada em macumbas e capoeiras.

11 – Tantã e repique de mão: ambos são produto da genialidade dos pagodeiros do Cacique de Ramos. O tantã foi criado por Sereno; o repique de mão nasceu das mãos de Ubirani. São tambores de tamanho reduzido e ajudaram na popularização do pagode, que necessitava de maior mobilidade e só poderia contar com instrumentos acústicos.


Rubem L. de F. Auto

Fontes: Almanaque do Samba: a história do samba...

quinta-feira, 20 de setembro de 2018

PERIFERIA, CAMPO E REFORMA AGRÁRIA: TUDO SE CONECTA NO ASSENTAMENTO



Na década de 1980, surgiu para o país aquele que seria um dos maiores, mais relevantes e, claro, polêmicos movimentos sociais do Brasil: o MST – Movimento dos Trabalhadores sem Terra.

Seguindo a trilha desbravada pelas Ligas Camponeses, um movimento de lavradores empobrecidos do nordeste sob a batuta de Julião e de outros líderes, que inclusive inspiraram uma obra cinematográfica, Cabra Marcado para Morrer, de Eduardo Coutinho,  o MST nasceu para lutar contra os latifúndios improdutivos, uma das chagas que afligem o quadro social pavoroso do país.

A música abaixo foi composta por Chico Buarque, incluída no encarte do livro Terra (há outra canção composta por Milton Nascimento), de 1997, escrito por José Saramago (e inspirado por Grandes Sertões, de Guimarães Rosa) e que trazia fotos de Sebastião Salgado. A renda foi destinada à infraestrutura de assentamentos do MST.

A letra conta a história de um morador de uma periferia de uma grande cidade brasileira, pobre e feirante, que se insere nas lutas campesinas por um pedaço de terra. Ao consegui-lo, deixa para trás a lembrança da cidade, maculada pelos sofrimentos cotidianos; abraça a vida no campo, na natureza, a vida do labor e do suor que irriga e aduba sua própria terra – ao lado de seus filhos. Lá, ele deseja morrer.

ASSENTAMENTO – CHICO BUARQUE

Quando eu morrer, que me enterrem na
beira do chapadão
-- contente com minha terra
cansado de tanta guerra
crescido de coração
Tôo
(apud Guimarães Rosa)

Zanza daqui
Zanza pra acolá
Fim de feira, periferia afora
A cidade não mora mais em mim
Francisco, Serafim
Vamos embora

Ver o capim
Ver o baobá
Vamos ver a campina quando flora
A piracema, rios contravim
Binho, Bel, Bia, Quim
Vamos embora

Quando eu morrer
Cansado de guerra
Morro de bem
Com a minha terra:
Cana, caqui
Inhame, abóbora
Onde só vento se semeava outrora
Amplidão, nação, sertão sem fim
Ó Manuel, Miguilim
Vamos embora


Rubem L. de F. Auto


quarta-feira, 19 de setembro de 2018

A REVOLUÇÃO JÁ FOI TELEVISIONADA...



Uma das criações tecnológicas que melhor simbolizaram o século XX foi a televisão. Desenvolvida na década de 1930, na década de 1940 já era bastante popularizada nos EUA. Até a chegada desse aparelhinho que adquiriu rapidamente o status de oráculo, o cinema era o principal meio de entretenimento com as massas, enquanto que o rádio exercia o papel de comunicador e de meio noticioso.

A primeira imagem televisionada em território nacional foi registrada em 1935: os cantores Francisco Alves e Marília Batista, acompanhados pelo regional de Benedito Lacerda, assombraram o público, ainda incrédulo da possibilidade de “ver” cantores e ouvi-los à distância.

Em 1950, o empresário magnata dos jornais, Assis Chateubriand Bandeira de Melo, proprietário da cadeia de jornais, revistas e rádios Diários Associados, resolveu mergulhar nos novos tempos e lançou a TV Tupi. O Brasil era então o quarto país do planeta a implantar emissoras de TV.
Inicialmente não havia mão de obra especializada naquela novidade tecnológica. Contrataram-se então os excelentes profissionais do rádio. De fato, a proto-televisão era nada mais do que o “rádio filmado”. Contudo, poucos anos depois, os aparelhos de TV seriam o eletrodoméstico mais popular do país, presente em mais de 90% dos lares.

Ainda nos primeiros anos da TV no Brasil, os concursos de música faziam muito sucesso no Brasil todo. Principiados em universidades e teatros, logo ganharam as telas. TV Record, Excelsior, Globo carrearam os festivais de canções de meados dos anos 1960 até o início da década de 1970 – e o motivo estava relacionado à proibição pelas Federações de Futebol de transmissão das partidas aos domingos, temerosos da perda eventual de público nos estádios; as emissoras precisavam preencher sua grade de alguma maneira. Foi o período conhecido como Era dos Festivais.

Embora a década de 1960 tenha sofrido um sacolejo político em 1964, o espírito da busca das mudanças, o desejo de mudar o mundo, a indignação diante da realidade era algo presente em todo o mundo, independente da existência de um governo ditatorial sobre suas cabeças. E um dos meios de mais fácil acesso ao discurso político e uma das mais eficientes maneiras de fazê-lo chegar às pessoas era por meio da música.

Embora os primeiros festivais tivessem o apelo bossa-novista, o discurso político já se fazia presente e as denúncias das mazelas sociais, constantes. Em decorrência de tudo isso, milhares de jovens buscavam avidamente o ambiente renovador dos concursos musicais, fosse como concorrente, fosse como plateia.

Aquele dezembro de 1968, quando um infame ato de governo veio a lume com o deprimente nome de Ato Institucional nº 5, marcou uma mudança na postura relativamente complacente da sociedade, fazendo com que o inconformismo atingisse a classe média, estudantes, artistas e intelectuais, levando-os a se insurgirem contra o governo da caserna.

Multiplicavam-se passeatas, o brocardo repressor “Brasil: ame-o ou deixe-o” materializava o inimigo a ser combatido. E um dos campos de batalha foi plasmado na forma dos festivais. A rebeldia, o posicionamento político crítico de alguns artistas, a emoção extravasada a cada votação do público, valia tudo para demostrar que, sem liberdade e cidadania, nenhum amor pelo país seria cultivado.
Se, por um lado, a Bossa Nova alcançou os festivais por sua persistência cronológica, as músicas de protesto e a tropicália nasceram e floresceram à sombra dos festivais. Embora bebessem em fontes distintas, em comum, tinham a contestação de “tudo isso que está aí”.

As músicas de protesto, ou de resistência, ou de engajamento político, os nomes são muitos, não eram um fenômeno restrito ao Brasil. A música folk fazia o mesmo nos EUA, especialmente no âmbito dos protestos contra a Guerra do Vietnã ou das lutas pelos direitos políticos da população negra. Outro exemplo internacional foi o cantor chileno Victor Jara, assassinado pela ditadura de Pinochet em 1973. Victor compôs “El derecho de vivier em paz”, em apoio aos vietnamitas, dentre outras músicas-manifesto.

Seguindo esse estilo de composição, no Brasil, ficaram muito populares nomes como Geraldo Vandré e Sérgio Ricardo. Geraldo soltou o grito engasgado na garganta de muitos em sua magistral música “Pra não dizer que não falei das flores”, segunda colocada no III Festival Internacional da Canção, da Rede Globo – perdeu para Sabiá, composta por Tom Jobim e Chico Buarque, executada sob forte vaia da plateia por não refletir a música predileta do público. Sérgio Ricardo compôs Zelão, um samba que descrevia os sofrimentos de um morador de uma favela de um morro do Rio de Janeiro. Naqueles anos de busca desenfreada pelo crescimento econômico e de rejeição oficial do que era popular, geralmente visto como arcaico, falar de pobreza e de desigualdade era equivalente a assumir o lado da oposição ao Regime.

Falar de música de protesto sem falar em Chico Buarque é um erro inadmissível. O samba “Vai Passar” fazia críticas incisivas contra o Regime, mas seria apenas um detalhe em meio a uma carreira riquíssima. Após compor as músicas “Olé, olá” e “Madalena foi pro mar”, lançadas em single, ele compôs seu primeiro sucesso internacional: A Banda. Esse “hit” foi lançado em 1966 no II Festival de MPB e ficou empatada em primeiro lugar com a inquietante “Disparada”, de Vandré e Theo de Barros. “A Banda” foi inserida no repertório da Band of Irish Guards para ser executada nas cerimônias de troca da guarda da Rainha da Inglaterra.

Seu primeiro disco, cujo título era seu nome, apenas, fê-lo ser chamado por Millôr Fernandes de “única unanimidade nacional”. Na fase seguinte, Chico inicia uma série de questionamentos de fundo social, portanto antipáticas ao Regime Militar de então. Quando lança sua peça Roda Viva, que contava as angústias por que passava um artista de televisão famoso, Ben Silver, Chico se envolveu em tamanha polêmica que culminou com seu exílio na Itália, ainda no final da década de 1960.
Seu retorno, em 1970, não marcou qualquer arrefecimento em seu discurso. Foi quando lançou pérolas como “Apesar de você”, “Geni e Zepelim”, “Cálice” e tantas outras. Para tanto, Chico inventou um pseudônimo, Julinho da Adelaide, e assim conseguiu driblar a perseguição que se instalara nos órgãos de censura contra seu nome.

Se suas composições musicais evoluíam a olhos vistos, seu poesia galgava novos patamares de excelência: complexas, experimentando métricas e pontuação, elaborando metáforas brilhantes, Chico ombreia o que há melhor na poesia e no cancioneiro brasileiro.

Já a Tropicália foi um caso a ser analisado à parte. O movimento musical se comunicava com diversos outros campos artísticos (como nas artes plásticas, a cargo de Hélio Oiticica; ou no cinema de Glauber Rocha), sempre em busca de renovação, sempre criticando o status quo. A Tropicália buscava aquilo que batizou de “geléia geral”: misturar tudo, o antigo e o moderno, o erudito e o folclórico, “urbis et orbis”. Foi por ali que a guitarra elétrica conseguiu penetrar na música brasileira. A antropofagia de Oswald de Andrade foi levada para a música, mastigou, engoliu e digeriu de Carmem Miranda a Beatles, passando por Lupicínio Rodrigues e João Gilberto.

Esse fenômeno dava azo às palavras de Oswald no seu manifesto Antropofágico: “Só a antropofagia nos une. Socialmente. Economicamente. Filosoficamente... nunca fomos catequizados. Fizemos foi o carnaval... Antropófagos. Tupy or not tupy, that is the question”.

Os nomes que melhor simbolizaram os tropicalistas foram: Caetano Veloso, Gilberto Gil, Tom Zé, Gal Costa, os roqueiros dos Mutantes, os poetas Torquato Neto e Capinam, os maestros Rogério Duprat e Júlio Medaglia, os artistas plásticos Hélio Oiticica e Rogério Duarte, mas muitos outros foram arrastados por essa corrente irresistível.

Irresistível, mas de brevíssima duração. Seu início se deu em 1967, no III Festival da Record, quando Gilberto Gil executou a icônica “Domingo no Parque”, ao lado do trio dos Mutantes, e quando Caetano cantou seu hino daquele Brasil, “Alegria, Alegria”, executada ao lado dos roqueiros argentinos dos Beat Boys.

Já seu fim foi tristemente marcado pela prisão arbitrária de Caetano e Gil, em dezembro de 1968, dias após a publicação do AI-5.

Mas não se pense que essa sequência de ondas transformadoras da música brasileira alijou o samba de seu papel fundamental. Tanto a tropicália quanto os hippies do singular Novos Baianos ajudaram a difundir não apenas o gênero musical que estava na gênese de suas canções, o samba, como popularizaram instrumentos como cavaquinho, bandolim, violão e pandeiro.

Tom Zé, excepcional músico e um dos artistas de destaque da obra seminal do tropicalismo, o álbum Tropicália ou Panis et Circenses, lançou em 1974 seu “Estudando o samba”. Álbum experimental, produto de uma pesquisa profunda sobre estilos rurais e urbanos de samba, sua vendagem só alcançou cifras expressivas anos depois, especialmente no mercado internacional.

E por falar em samba, ele também teve seu espaço na telinha. A TV Record organizou a Bienal do Samba em 1968. Ali, concorrentes e convidados coexistiam na mesma condição. Ouviu-se e cantou-se ali: “Tive Sim”, obra prima de Cartola cantada por Ciro Monteiro; “Lapinha”, de Baden Powel e Paulo César Pinheiro e cantada por Elis Regina, que venceu o festival; “Coisas do Mundo”, de Paulinho da Viola, que recebeu menção honrosa do júri após “sumir” naquele mar de composições maravilhosas. Chico Buarque, Billy Blanco e Elton Medeiros também concorreram com composições próprias.

Se essas armas não mataram o “inimigo”, ao menos trouxeram um tanto de reflexão e orgulho da própria cultura a alguns corações estropiados pelos embates políticos de antanho.


Rubem L. de F. Auto

Fonte: livro “Almanaque do samba: a história do samba...”

quinta-feira, 13 de setembro de 2018

DA DADOR-DE-COTOVELO AOS BARQUINHOS E PEIXINHOS – MPB EM GESTAÇÃO



Em 1939, após empreender a invasão da Polônia, tem início a II Guerra Mundial. O efeito mais imediato do conflito no campos das artes foi a redução de materiais culturais disponíveis (cinema, teatro, discos etc.).

O regime nazista da Alemanha era caracterizado pelos seu caráter antidemocrático, totalitário, racista, anti-semita, nacionalista e expansionista. À união daquela Alemanha com o fascismo italiano e o Japão imperialista de Hirohito deu-se a denominação de Eixo. Terminado o conflito, os ventos democráticos passaram a varrer o ocidente, dividindo-se assim o mundo entre os países de influência capitalista e aqueles de linha socialista: era a Guerra Fria.

A adesão do Brasil ao conflito se deu a conta-gotas. Vargas e o governo brasileiro demonstravam clara simpatia pelos nazifascistas, mas terminaram por se filiarem aos Aliados.

Por esse tempo o estilo musical preferido do povo era o samba, e as emissoras de rádio não paravam de irradiar canções de samba que o povo adorava ouvir.  

Mas o clima que vigiu no pós-guerra era de tristeza e melancolia. Milhões morreram nas trincheiras, cidadãos não envolvidos na guerra diretamente tiveram suas vidas abreviadas por conta de bombas lançadas sobre as cidades. Foi assim que o samba adquiriu um aspecto mais triste, passou a cantar desamores e relacionamentos mal sucedidos. O bolero passou a dar o tom. Era o samba-canção, estilo que revelou intérpretes valorosos e compositores inspiradíssimos.

O samba-canção, samba lento, de melodia romântica e letras dolorosamente românticas, surgiu em fins da década de 1920. Era chamado também de samba de meio de ano, para diferenciá-lo dos sambas-enredo. A primeira intérprete a se popularizar nesse estilo foi Aracy Cortes.

O samba-canção sofreu algumas influências externas, como dos boleros latinos. As letras traziam muito da filosofia existencialista europeia com seus desencantos do mundo. A orquestração semi-erudita é outro ponto forte do estilo musical.

Foi também na década de 1950 que a comunicação de massa aportou definitivamente aqui. Rádios, jornais, revistas e as recentes emissoras de televisão agitavam milhares de fãs em torno dos artistas mais populares.

O bairro que sediava os cantos e encantos do samba-canção era Copacabana, batizada de “princesinha do mar” na canção Copacabana, de João de Barro e Alberto Ribeiro. Saia de cena a Lapa e entravam nos melhores roteiros os bares, cabarés e restaurantes de Copa, que abrilhantavam a vida noturna dos boêmios.

Se na década de 1930 Copacabana era um idílico paraíso natural semi-desabitado, agora prostitutas, madames, políticos, intelectuais, milionários, traficantes e seus clientes, bronzeados, livres, leves e soltos dividiam espaço pelas ruas animadas do bairro.     

Contudo, ao final da década de 1950, o clima contido dos anos de guerra deu espaço à alegria. O governo JK devolveu o otimismo. E a música brasileira abriu alas para a bossa nova. Agora, jovens da Zona Sul carioca cantavam sobre amor, sol, mar, mulheres bonitas. Assim, ficava para trás a fossa e entrava em cena a alegria de viver.

Em 1963, surge um marco divisor de águas: o bar Zicartola, de propriedade de Cartola e sua esposa, dona Zica, localizado num sobrado no centro do Rio de Janeiro. Cantores como Zé Kéti, Elton Medeiros, Hermínio Bello de Carvalho, Tom Jobim, Carlos Lyra, Sérgio Ricardo, Nelson Sargento, Nara Leão e Paulinho da Viola batiam ponto no estabelecimento. Daí nasceram dois shows Marcantes: Opinião e Rosa de Ouro.

E a evolução musical brasileira estava apenas começando...


Rubem L. de F. Auto

Fonte: livro “Almanaque do samba: a história do samba...”

quarta-feira, 12 de setembro de 2018

FEIJÃO, SAMBA E CACHAÇA: A FEIJOADA ENCONTRA O BRASIL



A feijoada é considerada um dos símbolos culinários nacionais, mas sua história é bem mais antiga e de meandros mais complexos do que pode parecer à primeira vista.

O principal ingrediente desse prato, o feijão preto, teve seu cultivo iniciado pelos índios que habitavam nosso território e se diferenciava dos feijões europeu e africano. Os índios guaranis chamavam o feijão preto de comanda, comaná ou cumaná.  

O outro ingrediente sempre presente na farofa que lhe serve de acompanhamento, a farinha de mandioca também foi um cultivo indígena e de muito fácil acesso, a ponto de fazer parte da alimentação tanto dos índios, quanto dos africanos e dos europeus no Brasil.

Roças de feijão e de mandioca eram encontradas em diversos locais, como em torno das residências, especialmente das residências mais simples.

O feijão era um alimento de tão fácil acesso que fazia parte da alimentação dos escravos, na sua forma misturada com farinha de mandioca – embora alguns sustentem que a alimentação dos escravos nas senzalas era unicamente água com farinha de mandioca.

O prato em si é apenas uma derivação dos pratos europeus que tinham como base um caldo rico em sabor, onde ser cozinham a carne e outras partes dos animais, como pé e orelha de porco. Essa história pode ser traçada até milênios atrás. Segundo Câmara Cascudo, no Império Romana, na região do mediterrâneo, existiam pratos similares e prova disso são os diversos pratos latinos que seguem essa receita básica: cozido, em Portugal; cassoulet, na França; paella, na Espanha; casouela, na Itália.

Ao se utilizar feijão preto, partes de suínos, linguiça, a farofa de farinha de mandioca e os acompanhamentos à base de legumes e verduras, nasceu a feijoada.

Mas Carlos Alberto Dória entende que a feijoada é derivada de outro prato, o chamado “feijão gordo”. Este, seria um ensopado de feijão, toucinho e carne seca. Ao se acrescentarem linguiça, legumes, verduras e partes do porco, o feijão gordo assim enriquecido se tornou a feijoada.

Aliás, a antiga descrição da feijoada como prato originado da cozinha das senzalas caiu por terra quando Câmara Cascudo confrontou essa tese com o fato de que grande parte dos escravos trazidos da África era de religião islâmica, portanto proibidos de consumir carne de porco.

O prato completo, na forma como o conhecemos, foi criado em meados do século XIX, incluído no menu de restaurantes caros, reservados à elite. Passo seguinte, chegou aos hotéis e às pensões.

No século XX, finalmente, a feijoada alcançou o patamar de identidade nacional pelas mãos dos artistas modernistas, sedentos de símbolos que representassem a antropofagia como método de formação da brasilidade (a fusão de elementos culturais de diferentes locais do mundo). Mário de Andrade inclusive usou uma cena de festa, em Macunaíma, para apresentar a cozinha brasileira e diversas outras que nos influenciaram.

Por fim, foi no bairro da Cidade Nova que o samba se encontrou com a feijoada para nunca mais se desgrudarem. Fundamental foi o papel exercido pelas “tias” do samba: organizavam festas cujos atrativos eram o feijão, o samba e a cachaça. Esse fato está expresso em letras de sambas como “No pagode do Vavá”, de Paulinho da Viola:
“Domingo, lá na casa do Vavá
Teve um tremendo pagode
Que você não pode imaginar
Provei do famoso feijão da Vicentina
Só quem é da Portela é que sabe
Que a coisa é divina

Tinha gente de todo lugar
No pagode do Vavá

Nego tirava o sapato, ficava à vontade
Comia com a mão
Uma batida gostosa que tinha o nome
De doce ilusão
(...)”

A Tia Vicentina era irmã de Natal da Portela, bicheiro e patrono da Escola de Samba presente em seu agnome. Impossível não pensar nas famosas Tias da Praça Onze, que inspiraram as alas das baianas e que cozinhavam quitutes muito apreciados.

Uma receita bem famosa de feijoada foi descrita por Vinicius de Morais no seu apetitoso “Feijoada à Minha Moda”:
“Amiga Helena Sangirardi
Conforme um dia eu prometi
Onde, confesso que esqueci
E embora - perdoe - tão tarde

(Melhor do que nunca!) este poeta
Segundo manda a boa ética
Envia-lhe a receita (poética)
De sua feijoada completa.

Em atenção ao adiantado
Da hora em que abrimos o olho
O feijão deve, já catado
Nos esperar, feliz, de molho.

E a cozinheira, por respeito
À nossa mestria na arte
Já deve ter tacado peito
E preparado e posto à parte

Os elementos componentes
De um saboroso refogado
Tais: cebolas, tomates, dentes
De alho - e o que mais for azado

Tudo picado desde cedo
De feição a sempre evitar
Qualquer contato mais... vulgar
Às nossas nobres mãos de aedo

Enquanto nós, a dar uns toques
No que não nos seja a contento
Vigiaremos o cozimento
Tomando o nosso uísque on the rocks.

Uma vez cozido o feijão
(Umas quatro horas, fogo médio)
Nós, bocejando o nosso tédio
Nos chegaremos ao fogão

E em elegante curvatura:
Um pé adiante e o braço às costas
Provaremos a rica negrura
Por onde devem boiar postas

De carne-seca suculenta
Gordos paios, nédio toucinho
(Nunca orelhas de bacorinho
Que a tornam em excesso opulenta!)

E - atenção! - segredo modesto
Mas meu, no tocante à feijoada:
Uma língua fresca pelada
Posta a cozer com todo o resto.

Feito o quê, retire-se caroço
Bastante, que bem amassado
Junta-se ao belo refogado
De modo a ter-se um molho grosso

Que vai de volta ao caldeirão
No qual o poeta, em bom agouro
Deve esparzir folhas de louro
Com um gesto clássico e pagão.

Inútil dizer que, entrementes
Em chama à parte desta liça
Devem fritar, todas contentes
Lindas rodelas de lingüiça

Enquanto ao lado, em fogo brando
Desmilingüindo-se de gozo
Deve também se estar fritando
O torresminho delicioso

Em cuja gordura, de resto
(Melhor gordura nunca houve!)
Deve depois frigir a couve
Picada, em fogo alegre e presto.

Uma farofa? - tem seus dias...
Porém que seja na manteiga!
A laranja gelada, em fatias
(Seleta ou da Bahia) - e chega.

Só na última cozedura
Para levar à mesa, deixa-se
Cair um pouco da gordura
Da lingüiça na iguaria - e mexa-se.

Que prazer mais um corpo pede
Após comido um tal feijão?
- Evidentemente uma rede
E um gato para passar a mão...

Dever cumprido. Nunca é vã
A palavra de um poeta... - jamais!
Abraça-a, em Brillat-Savarin
O seu Vinicius de Moraes.”


Como uma última sugestão de preparo, segue a receita mais modesta trazida por Chico Buarque em “Feijoada Completa”:
“Mulher, você vai gostar:
Tô levando uns amigos pra conversar.
Eles vão com uma fome
Que nem me contem;
Eles vão com uma sede de anteontem.
Salta a cerveja estupidamente
Gelada pr'um batalhão
E vamos botar água no feijão.

Mulher, não vá se afobar;
Não tem que pôr a mesa, nem dá lugar.
Ponha os pratos no chão e o chão tá posto
E prepare as lingüiças pro tiragosto.
Uca, açúcar, cumbuca de gelo, limão
E vamos botar água no feijão.

Mulher, você vai fritar
Um montão de torresmo pra acompanhar:
Arroz branco, farofa e a malagueta;
A laranja-bahia ou da seleta.
Joga o paio, carne seca,
Toucinho no caldeirão
E vamos botar água no feijão.

Mulher, depois de salgar
Faça um bom refogado,
Que é pra engrossar.
Aproveite a gordura da frigideira
Pra melhor temperar a couve mineira.
Diz que tá dura, pendura
A fatura no nosso irmão
E vamos botar água no feijão.”


Rubem L. de F. Auto

Fonte: “Almanaque do samba: a história do samba...”