Em 23 de março de 1933 ocorreu uma das sessões mais
importantes da história do Reichstag, o Parlamento alemão. Reunidos na Ópera
Kroll devido ao incêndio do Parlamento, deputados nazistas, nacionalistas e
social-democratas, além dos deputados do Partido do Centro, deliberaram sobre a
proposta de lei trazida pelos nazistas, liderados por Hitler, já empossado no
cargo de Chanceler.
A paisagem política daqueles dias era a pior possível. Após
o incêndio do Parlamento, as investigações manipuladas que se seguiram
apontaram a culpa para os comunistas, grupo político localizado no espectro
oposto dos nazistas no poder. Seguiu-se então uma perseguição política que
praticamente exterminou os comunistas do ambiente político alemão. Restavam
apenas os social-democratas na oposição aos nazistas. Pela situação, nazistas e
seus aliados nacionalistas, formavam uma coalizão muito forte, mas não era
suficiente para aprovar qualquer coisa. Esse cenário mudou quando conseguiram
elaborar o plano que levou ao extermínio do Partido Comunista, e quando
atraíram o apoio do Partido do Centro, ao cooptarem seu líder, Pralat Ludwig
Kaas, que passou de uma hora para outra a repetir que a Alemanha corria o risco
de uma guerra civil iminente.
Essa sessão de março de 1933 foi particularmente tensa.
Unidades das SS guardavam a parte exterior do prédio; dentro, longas fileiras
de homens vestindo a camisa marrom da SA ladeavam a bandeira com a suástica, impondo
pressão sobre os parlamentares críticos aos movimentos políticos dos nazistas.
O presidente do Parlamento era Hermann Goring, quem abriu a
sessão e logo passou a palavra a seu mentor e chanceler, Adolf Hitler. Este
iniciou seu discurso seguindo a estratégia que lhe era comum, falando da
miséria que se abateu sobre os pobres alemães. Depois passou a descrever como
suas medidas ajudariam a renovar profundamente a moral nacional. Por meio da
educação, dos meios de comunicação e das artes a nação sairia do caos em que se
encontrava. Hitler prometeu combater o desemprego por meio de políticas
públicas de criação de postos de trabalho, além da promessa usual de que o
porte do exército alemão ficaria inalterado, a menos que todos os países do
mundo firmassem um acordo de desarmamento radical.
Para pôr todos os seus planos em execução, Hitler propôs que
o Reichstag promulgasse uma Lei Habilitante, transformando-o num ditador de
fato, reunindo em suas mãos plenos poderes políticos, eliminando na prática o
próprio Parlamento da vida política alemã. Hitler prometia que se tratava de
uma medida temporária e que o Parlamento retornaria em breve ao seu
funcionamento normal. Dizia que de maneira alguma sua existência estava sob
ameaça.
Sua descida do púlpito foi acompanhada pelo coro da maioria dos
deputados, cantando Deutschland uber Alles (Alemanha acima de todos) a plenos
pulmões. Após, foi dado um intervalo de 3 horas de descanso. A pressão pela
aprovação da Lei Habilitante também contou com os gritos efusivos dos guardas
da SS, do lado de fora, bradando: “Queremos a Lei Habilitante – se não o
castigo será o inferno.”
Mas o caminho da aprovação da proposta de lei contaria com
um obstáculo: Otto Wels, presidente do Partido Social-Democrata. Ao tomar a
palavra, fez-se silêncio. Wels trazia em seu bolso uma cápsula e cianureto, veneno
que tomaria caso fosse preso.
Iniciou seu discurso já antecipando que seu partido não
votaria a favor da Lei Habilitante. Disse que os nazistas e seus aliados haviam
vencido as eleições de 5 de março e que deveriam, portanto, governar o país
constitucionalmente – aliás, Wels falou que eles tinham a obrigação de fazê-lo.
Passou então a argüir que o Reich deveria permitir que as mais amplas críticas
fossem feitas ao governo, sem perseguição de quem quer que fosse, pois era isso
que o mantinha saudável.
Wels terminou então sua intervenção falando às gerações
futuras: “Nesse momento histórico, nós, social-democratas alemães, professamos
solenemente nossa adesão aos princípios básicos da humanidade e justiça,
liberdade e socialismo. Nenhuma Lei Habilitante pode dar o direito de aniquilar
idéias que são eternas e indestrutíveis... Saudamos os perseguidos e os
intimidados. A sua firmeza e lealdade são admiráveis. A coragem de suas
convicções, sua confiança inabalável, asseguram um grande futuro.”
Hitler não poderia deixar um discurso desses sem resposta.
Correu então ao púlpito e bradou contra Wels: “O senhor demorou para vir, mas
acabou chegando! As belas teorias que acaba de proclamar aqui, senhor deputado,
estão sendo comunicadas à história mundial um pouco tarde demais.”
Depois, passou a se pôr no lugar de vítima, tática que usava
com freqüência e com bons resultados: “O senhor fala em perseguições. Acho que
poucos de nós aqui não sofreram perseguições provenientes do seu lado e foram
parar na prisão... O senhor parece ter esquecido completamente que durante anos
nossas camisas nos foram arrancadas porque o senhor não gostava da cor... Nós
sobrevivemos às suas perseguições! O senhor diz também que as críticas são
salutares. Com certeza, aqueles que amam a Alemanha podem nos criticar; mas
aqueles que adoram uma Internacional não podem nos criticar. Aqui, também, a
clareza lhe chega com um pouco de atraso, senhor deputado. O senhor deveria ter
reconhecido a natureza salutar da crítica durante o tempo em que éramos
oposição... Naquela época nosso jornal foi proibido, e proibido, e proibido de
novo, nossas reuniões foram proibidas, e nós fomos proibidos de falar e eu fui
proibido de falar, por anos a fio. E agora o senhor diz: a crítica é salutar!”
Após umabreve interrupção de deputados social-democratas
revoltados com o que ouviam, Hitler retomou de onde havia parado: “O senhor
diz: “Agora eles querem pôr o Reichstag de lado a fim de continuar a revolução.”
Senhores, se fosse essa a nossa intenção, não teríamos nos dado ao trabalho
de... de apresentar essa lei. Por Deus, teríamos tido a coragem de lidar com
vocês de um jeito diferente! Vocês também dizem que sequer poderíamos abolir a
social-democracia porque ela foi a primeira a abrir estes assentos aqui ao
homem comum, ao trabalhador e à mulher, e não apenas aos barões e condes. Em
tudo isso, senhor deputado, o senhor chegou tarde demais... A partir de agora,
nós, nacional-socialistas, iremos tornar possível ao trabalhador alemão
alcançar o que ele é capaz de pedir e insiste em pedir. Nós, nacional-
socialistas, seremos seus intercessores. Os senhores, cavalheiros, não são mais
necessários!”
Hitler expôs então o que estava realmente subjacente àquele
circo: “Apelamos nesse momento ao Reichstag alemão para que nos dê aquilo que
poderíamos de qualquer modo ter tomado.” E, voltando-se para os
social-democratas, disse, com desdém: “A Alemanha deve ser livre, mas não
através de vocês!”
O resultado da votação apontou uma vitória acachapante dos
nazistas: 441 a 94. O nome da lei aprovada foi: Lei para a Remoção da Aflição
do Povo e do Reich. Sua aprovação representava o fim formal do Parlamento
alemão.
O dia seguinte foi marcado pelas manchetes espantadas nos
jornais, como no NY Times: “O gabinete de Hitler assume o poder para governar
como ditadura; o Reichstag renuncia sine die. Nunca houve uma exaltação tão
brutal de mera força... Na própria proclamação desta Alemanha implacável e
absolutamente independente que irá se formar... o novo governo alemão vê-se
confrontado com a condenação moral de quase todo o resto do mundo.”
Pelas palavras do jornal norte-americano, poderia-se supor
que um evento tão brutalmente antidemocrático como este ocorrido na Alemanha
nunca se repetiria nos EUA. No entanto, uma obra cinematográfica mostraria que
essa tese não era inteiramente verdadeira.: Gabriel over the White House (O
Despertar de uma Nação).
A história sintetizada é mais ou menos essa: “um senador chamado
senhor Langham, pede o impeachment do recém-eleito presidente dos EUA que,
segundo o senador, vinha agindo de maneira imprópria e a sala irrompe numa
mistura de protestos e aplausos. Então o presidente entra pela porta e a sala
fica em silêncio. Ele se posta diante de uma gigantesca bandeira americana e
todos aguardam sua fala. Como Hitler, ele começa em tom abatido. Diz que se
torna representante do povo americano na sua hora de mais sombrio desespero.
Durante anos, o Congresso andou desperdiçando dinheiro em negociatas que não
beneficiaram o cidadão americano comum. Incontáveis horas foram perdidas em
discussões fúteis. Agora era hora de agir. O presidente pede aos deputados e
senadores que votem um estado de emergência no país, pondo o Congresso entre em
recesso, temporariamente, claro, somente até que as coisas voltem ao eixo.
Durante esse período, o próprio Presidente assumiria total responsabilidade por
tudo o que ocorresse.
Pronunciadas essas palavras insólitas, o mesmo senador
Langham não se contém: “Senhor presidente, isso é ditatorial! Os EUA são uma
democracia! Não estamos prontos para abrir mão do governo de nossos pais!”
O presidente então vocifera de volta: “Vocês já abriram mão.
Vocês viraram as costas. Taparam seus ouvidos aos apelos do povo. Vocês têm
sido traidores dos conceitos de democracia sobre os quais esse governo foi
fundado.”
O presidente então continua, em tom mais brando: “Eu
acredito em democracia, assim como Washington, Jefferson e Lincoln acreditaram
na democracia. E se o que eu planejo fazer em nome do povo me torna um ditador,
então é uma ditadura baseada na definição de Jefferson da democracia: um
governo para o bem maior do maior número possível de pessoas!”
Embora os demais tenham aplaudido vibrantemente o discurso
do presidente, o bravo senador Langham não desistiu, embora já mostrasse algum
desânimo: “Esse Congresso se recusa a entrar em recesso.”
Mas o presidente não se intimidou e mostrou suas armas: “Acho,
senhores, que estão esquecendo que ainda sou o presidente dos EUA. E como
Comandante em Chefe do Exército e da Marinha, é dentro dos meus direitos como
presidente que declaro o país sob Lei Marcial!”
Resultado da votação: 390 votos a favor, 16 contra. A Lei de
Emergência foi aprovada e a manchete do Washington Herald não deixava dúvida
sobre o ocorrido: “O Congresso atende ao pedido do presidente, entra em recesso
por votação esmagadora.”
Assim como Hitler, que usava os judeus como inimigos a serem
perseguidos, o presidente fictício usava os gangsteres como inimigos a serem
perseguidos.
Assim como Hitler, um presidente norte-americano havia
obtido poderes ditatoriais absolutos, apelando para o medo e prometendo
resolver os problemas da nação de uma maneira que seria impossível sob um
governo democrático.
Incrivelmente, o filme estreou apenas 2 meses após o evento na Ópera Kroll. Ou seja, a história estava pronta antes que o evento alemão quase análogo ocorresse. Sem dúvidas, esse fato denotava que a semente do nazismo estava presente em diversos países quando eclodiu na Alemanha.
Felizmente a história não deixou que mentiras sedutoras como
essa se espalhassem demais... ao menos naquele tempo.
Rubem L. de F. Auto
Fonte: “A colaboração: o pacto entre Hollywood e o nazismo”
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