Embora já se fizessem filmes parcialmente coloridos desde
meados dos anos 1920, foi somente na década de 1930 que o uso da inovadora
tecnologia do Technicolor se tornou a regra na produção de filmes.
Os dois primeiros filmes desse tipo a aportarem na Alemanha
foram “Ramona” e “Wings of the Morning” (Idílio Cigano). E imediatamente
despertaram críticas pela forma como se trabalhavam as questões raciais,
segundo a ideologia nazista, em seus enredos. Como escreveu o crítico nazista Wilhem
Frels: “Filmes coloridos adoram usar pessoas de cor, por seu tom de pele mais
eficaz”.
“Wings of the Morning” foi encarado mesmo como uma
provocação, especialmente por sua cena de abertura: Um chefe indígena chamado
Alessandro encontra uma mulher branca, presa em cima de uma árvore. A mulher se
chama Ramona e está sendo procurada por dezenas de homens. Passam então várias
dias juntos até que a cena mais chocante da história é descortinada: uma mulher
branca deitada nos braços de um índio.
Esse tipo de enredo era de tal forma vedado que a história
teve de contar com algum subterfúgio que a tornasse minimamente aceitável. Para
tanto, em dado momento, a madrasta de Ramona faz uma revelação, quando toma
conhecimento do relacionamento proibido que a filha vinha cultivando: “Você foi
criada na minha casa, como minha própria filha. O tempo todo eu vivi com medo
de que cedo ou tarde o sangue da sua mãe viesse à tona.” A filha então retruca:
“Como você pode falar desse modo da minha mãe? Afinal, ela era sua irmã.”
A madrasta então revela a trama oculta: “Não era, não! Ela
era mulher de um índio.”
Pronto, o filme agora não aborda exatamente o relacionamento
entre uma branca e um índio, mas entre uma mestiça e um índio. Ramona agora
poderia correr para os braços de seu amante ameríndio.
Mas, na Alemanha nazista, mesmo esse tipo de “truque” era
inaceitável: eles haviam gastado muito tempo e esforço para exterminar qualquer
veleidade de casamento entre pessoas de “raças” diferentes do país. Por isso o
filme não foi muito bem recebido por críticos de ideologia nazista. Mas o filme
seguinte causaria ainda mais mal-estar nessas pessoas: se Ramona abordava a
problemática indígena, Wings of the Morning tratava de um grupo abertamente perseguido
pelo partido no poder na Alemanha, os ciganos.
Tendo recebido o nome de “A Princesa Cigana” na Alemanha,
Wings of the Mornin conta história de um homem branco que se apaixona por uma
mulher cigana. Como se não fosse o bastante, o tal homem pede desculpas à
garota cigana pelo preconceito manifestado pelos seus amigos: “Essas pessoas,
elas não têm imaginação, não entendem nada.” E sem truques: o homem não se
revela um cigano em momento algum.
Para críticos nazistas, exibir os dois primeiros filmes
coloridos em solo alemão, cujos enredos praticamente exaltavam o casamento
inter-racial, no momento em que o cerco nazista se fortalecia na Europa contra
grupos “raciais” discriminados, era quase uma ofensa aberta pelos
norte-americanos. Essa exaltação de “pessoas de cor” deveria ser barrada, e não
queria discutir muito sobre os reais motivos subjacentes.
O primeiro problema com filmes que retratavam ciganos se deu
alguns meses antes, numa produção de O Gordo e O Magro: The Bohemian Girl (A
Garota Cigana). O motivo da censura foi explicitado assim: “Esse filme
essencialmente dá uma falsa imagem da censurável vida dos ciganos e de uma forma
kitsch e não tem lugar na nossa nação.”
Mais uma polêmica ressurgiu em 1938, com a produção “Sanghai”,
da Paramount. O filme tratava de um homem de negócios bem-sucedido, cujo pai
era branco e a mãe era uma princesa da Manchúria. O filme Ra um primor de
tolerância e terminava com o seguinte magnífico epílogo à Martin Luther King: “Algum
dia, o preconceito irá desaparecer, a convenção irá caducar. Os homens serão
julgados não por seu credo ou cor, mas por seus méritos. Talvez não vivamos
para ver esse dia – rezo a Deus que possamos.”
Esse filme estreou na Alemanha em 1938 e foi
surpreendentemente elogiado pela imprensa alemã. Aliás, os três filmes citados
foram exibidos na Alemanha, pouquíssimos críticos, como Wilhem Frels,
conseguiram captar o fato de que seus enredos iam de encontro à ideologia
nazista.
Pois bem, em 1940 é exibida outra obra polêmica – na Alemanha:
Susannah os the Mounties (Suzana). Nesse filem, Shirley Temple, uma das atrizes
mais populares na Alemanha, encena mais um relacionamento entre brancos e
índios no Velho Oeste.
Mas um grupo criaria um escarcéu tremendo devido à liberação
dessas quatro obras no mercado alemão, especialmente essa última: a SS, a
milícia do partido nazista.
O filme Susannah of the Mounties recebeu orientação do
partido nazista para que fosse tratado como um entretenimento inofensivo pela
imprensa, mas a cena final, em que Shirley espeta o dedo e mistura seu sangue
com o de um garoto índio, despertou ódio na organização preferida do Fuhrer: “Estamos
apresentando queixas específicas contra artigos da imprensa que mostram
Susannah of the Mounties num viés positivo.”
Logo após, a mesma SS apresentou suas queixas contra Ramona,
que ainda estava em exibição. Apesar desses protestos, os filmes não foram
censurados e, em fevereiro de 1940, mais um capítulo dessa novela seria
encenado com a produção “Let Freedom Ring” (O Trovador da Liberdade), um
musical de Ben Hecht.
Uma breve sinopse: Jim Knox, proprietário de uma ferrovia,
vinha usando um meio abusivo para expulsar os moradores de um pequeno vilarejo.
Oferecia um valor baixo pelas terras pretendidas; quando o proprietário se
recusava, mandava seus capangas queimarem suas casas. No entanto, ao tratar com
Thomas Logan, passou a ter problemas com seu filho, Steve, um advogado formado
em Harvard. De volta à casa do pai, Steve mente, tentando fazer parecer que
apoiava a oferta de Jim Knox, mas queria apenas mais tempo para achar uma
maneira de barrar os planos do maquiavélico empresário.
Steve então apela para a liberdade de imprensa, direito constitucional
inalienável. Imprime diversos panfletos contra os planos de Knox e os distribui
a seus empregados. Nos panfletos, Knox pediu que se levantassem contra o
empregador. Diante da resistência dos trabalhadores, Steve entoa um cântico que
lhes lembrava de que, na condição de norte-americanos, haviam todos nascido
livres.
No momento “allegro” da obra Steve e Knox tratavam uma
discussão calorosa, diante dos trabalhadores: Steve: “Vocês querem me ouvir
mais uma vez? Vocês foram trazidos para cá em barcos de gado, mas eu digo que
vocês são homens.” Knox intervém: “Voltem para suas cabanas, todos vocês!”;
Steve: “Vocês dizem que vieram para cá atrás de... liberdade e autonomia, então
não vão deitar na lama aos pés de Jim Knox.” Knox: “Não liguem para o que ele
diz. Eu sou o chefe aqui.”; Steve: “O seu chefe chama vocês de refugo e
gentalha. Eu chamo vocês de outra coisa. Chamo de americanos.” Knox: “Vamos lá,
vamos lá, estou mandando.”; Steve: “Não há tiranos dando ordens nesse país! Não
há nenhum homem que seja maior ou mais forte do que vocês se souberem erguer a
cabeça.”; Knox: “Vamos, xerife, tire esse homem daqui.”
E então vem a frase mais antinazista do filme, pronunciada
por Steve: “Vocês, alemães, italianos; vocês, judeus, russos e irlandeses;
todos vocês que são oprimidos”; então hesita, mas sua namorada, Maggie, começa
a cantar Let Freedom Ring, os trabalhadores entendem o recado e derrubam seu
chefe tirânico.
Incrivelmente esse trecho inteiro foi mantido na versão para
ser exibida na Alemanha, o filme fez tremendo sucesso, recebeu resenhas
elogiosas nos jornais e... Ninguém percebeu seu caráter antinazista. Aliás,
alguns críticos chegaram ao absurdo de associarem Jim Knox aos judeus, quando o
discurso em favor dos judeus foi feito justamente para derrubá-lo!
Esse fato expôs que era absolutamente ineficaz fazer filmes
antinazistas para as plateias alemãs: eles eram capazes de adorar a obra, porém
fazendo uma interpretação completamente casuística do enredo.
Mas os embates entre Hollywood e o Reich estavam chegando a
um ponto insustentável, eram dezenas os filmes censurados na Alemanha. Como os próprios
nazistas sabiam, caso houvesse uma cisão com Hollywood, os bandidos prediletos
dos diretores seriam basicamente os nazistas (afinal, eles sempre precisaram de
um inimigo para fazer o contraponto ao herói em seus filmes), e ficaria difícil
de se fazer uma interpretação casuística de uma obra que colocasse os nazistas
no claro papel de vilões.
E esse período parecia iminente.
Rubem L. de F. Auto
Fonte: livro “A Colaboração: o Pacto entre Hollywood e o nazismo”
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