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quinta-feira, 8 de março de 2018

FILMES COLORIDOS QUESTIONAVAM PRECONCEITOS RACIAIS


Embora já se fizessem filmes parcialmente coloridos desde meados dos anos 1920, foi somente na década de 1930 que o uso da inovadora tecnologia do Technicolor se tornou a regra na produção de filmes.
Os dois primeiros filmes desse tipo a aportarem na Alemanha foram “Ramona” e “Wings of the Morning” (Idílio Cigano). E imediatamente despertaram críticas pela forma como se trabalhavam as questões raciais, segundo a ideologia nazista, em seus enredos. Como escreveu o crítico nazista Wilhem Frels: “Filmes coloridos adoram usar pessoas de cor, por seu tom de pele mais eficaz”.

“Wings of the Morning” foi encarado mesmo como uma provocação, especialmente por sua cena de abertura: Um chefe indígena chamado Alessandro encontra uma mulher branca, presa em cima de uma árvore. A mulher se chama Ramona e está sendo procurada por dezenas de homens. Passam então várias dias juntos até que a cena mais chocante da história é descortinada: uma mulher branca deitada nos braços de um índio.

Esse tipo de enredo era de tal forma vedado que a história teve de contar com algum subterfúgio que a tornasse minimamente aceitável. Para tanto, em dado momento, a madrasta de Ramona faz uma revelação, quando toma conhecimento do relacionamento proibido que a filha vinha cultivando: “Você foi criada na minha casa, como minha própria filha. O tempo todo eu vivi com medo de que cedo ou tarde o sangue da sua mãe viesse à tona.” A filha então retruca: “Como você pode falar desse modo da minha mãe? Afinal, ela era sua irmã.”

A madrasta então revela a trama oculta: “Não era, não! Ela era mulher de um índio.”

Pronto, o filme agora não aborda exatamente o relacionamento entre uma branca e um índio, mas entre uma mestiça e um índio. Ramona agora poderia correr para os braços de seu amante ameríndio.

Mas, na Alemanha nazista, mesmo esse tipo de “truque” era inaceitável: eles haviam gastado muito tempo e esforço para exterminar qualquer veleidade de casamento entre pessoas de “raças” diferentes do país. Por isso o filme não foi muito bem recebido por críticos de ideologia nazista. Mas o filme seguinte causaria ainda mais mal-estar nessas pessoas: se Ramona abordava a problemática indígena, Wings of the Morning tratava de um grupo abertamente perseguido pelo partido no poder na Alemanha, os ciganos.

Tendo recebido o nome de “A Princesa Cigana” na Alemanha, Wings of the Mornin conta história de um homem branco que se apaixona por uma mulher cigana. Como se não fosse o bastante, o tal homem pede desculpas à garota cigana pelo preconceito manifestado pelos seus amigos: “Essas pessoas, elas não têm imaginação, não entendem nada.” E sem truques: o homem não se revela um cigano em momento algum.
Para críticos nazistas, exibir os dois primeiros filmes coloridos em solo alemão, cujos enredos praticamente exaltavam o casamento inter-racial, no momento em que o cerco nazista se fortalecia na Europa contra grupos “raciais” discriminados, era quase uma ofensa aberta pelos norte-americanos. Essa exaltação de “pessoas de cor” deveria ser barrada, e não queria discutir muito sobre os reais motivos subjacentes.
O primeiro problema com filmes que retratavam ciganos se deu alguns meses antes, numa produção de O Gordo e O Magro: The Bohemian Girl (A Garota Cigana). O motivo da censura foi explicitado assim: “Esse filme essencialmente dá uma falsa imagem da censurável vida dos ciganos e de uma forma kitsch e não tem lugar na nossa nação.”

Mais uma polêmica ressurgiu em 1938, com a produção “Sanghai”, da Paramount. O filme tratava de um homem de negócios bem-sucedido, cujo pai era branco e a mãe era uma princesa da Manchúria. O filme Ra um primor de tolerância e terminava com o seguinte magnífico epílogo à Martin Luther King: “Algum dia, o preconceito irá desaparecer, a convenção irá caducar. Os homens serão julgados não por seu credo ou cor, mas por seus méritos. Talvez não vivamos para ver esse dia – rezo a Deus que possamos.”
Esse filme estreou na Alemanha em 1938 e foi surpreendentemente elogiado pela imprensa alemã. Aliás, os três filmes citados foram exibidos na Alemanha, pouquíssimos críticos, como Wilhem Frels, conseguiram captar o fato de que seus enredos iam de encontro à ideologia nazista.

Pois bem, em 1940 é exibida outra obra polêmica – na Alemanha: Susannah os the Mounties (Suzana). Nesse filem, Shirley Temple, uma das atrizes mais populares na Alemanha, encena mais um relacionamento entre brancos e índios no Velho Oeste.

Mas um grupo criaria um escarcéu tremendo devido à liberação dessas quatro obras no mercado alemão, especialmente essa última: a SS, a milícia do partido nazista.

O filme Susannah of the Mounties recebeu orientação do partido nazista para que fosse tratado como um entretenimento inofensivo pela imprensa, mas a cena final, em que Shirley espeta o dedo e mistura seu sangue com o de um garoto índio, despertou ódio na organização preferida do Fuhrer: “Estamos apresentando queixas específicas contra artigos da imprensa que mostram Susannah of the Mounties num viés positivo.”

Logo após, a mesma SS apresentou suas queixas contra Ramona, que ainda estava em exibição. Apesar desses protestos, os filmes não foram censurados e, em fevereiro de 1940, mais um capítulo dessa novela seria encenado com a produção “Let Freedom Ring” (O Trovador da Liberdade), um musical de Ben Hecht.

Uma breve sinopse: Jim Knox, proprietário de uma ferrovia, vinha usando um meio abusivo para expulsar os moradores de um pequeno vilarejo. Oferecia um valor baixo pelas terras pretendidas; quando o proprietário se recusava, mandava seus capangas queimarem suas casas. No entanto, ao tratar com Thomas Logan, passou a ter problemas com seu filho, Steve, um advogado formado em Harvard. De volta à casa do pai, Steve mente, tentando fazer parecer que apoiava a oferta de Jim Knox, mas queria apenas mais tempo para achar uma maneira de barrar os planos do maquiavélico empresário.

Steve então apela para a liberdade de imprensa, direito constitucional inalienável. Imprime diversos panfletos contra os planos de Knox e os distribui a seus empregados. Nos panfletos, Knox pediu que se levantassem contra o empregador. Diante da resistência dos trabalhadores, Steve entoa um cântico que lhes lembrava de que, na condição de norte-americanos, haviam todos nascido livres.

No momento “allegro” da obra Steve e Knox tratavam uma discussão calorosa, diante dos trabalhadores: Steve: “Vocês querem me ouvir mais uma vez? Vocês foram trazidos para cá em barcos de gado, mas eu digo que vocês são homens.” Knox intervém: “Voltem para suas cabanas, todos vocês!”; Steve: “Vocês dizem que vieram para cá atrás de... liberdade e autonomia, então não vão deitar na lama aos pés de Jim Knox.” Knox: “Não liguem para o que ele diz. Eu sou o chefe aqui.”; Steve: “O seu chefe chama vocês de refugo e gentalha. Eu chamo vocês de outra coisa. Chamo de americanos.” Knox: “Vamos lá, vamos lá, estou mandando.”; Steve: “Não há tiranos dando ordens nesse país! Não há nenhum homem que seja maior ou mais forte do que vocês se souberem erguer a cabeça.”; Knox: “Vamos, xerife, tire esse homem daqui.”
E então vem a frase mais antinazista do filme, pronunciada por Steve: “Vocês, alemães, italianos; vocês, judeus, russos e irlandeses; todos vocês que são oprimidos”; então hesita, mas sua namorada, Maggie, começa a cantar Let Freedom Ring, os trabalhadores entendem o recado e derrubam seu chefe tirânico.
Incrivelmente esse trecho inteiro foi mantido na versão para ser exibida na Alemanha, o filme fez tremendo sucesso, recebeu resenhas elogiosas nos jornais e... Ninguém percebeu seu caráter antinazista. Aliás, alguns críticos chegaram ao absurdo de associarem Jim Knox aos judeus, quando o discurso em favor dos judeus foi feito justamente para derrubá-lo!

Esse fato expôs que era absolutamente ineficaz fazer filmes antinazistas para as plateias alemãs: eles eram capazes de adorar a obra, porém fazendo uma interpretação completamente casuística do enredo.   

Mas os embates entre Hollywood e o Reich estavam chegando a um ponto insustentável, eram dezenas os filmes censurados na Alemanha. Como os próprios nazistas sabiam, caso houvesse uma cisão com Hollywood, os bandidos prediletos dos diretores seriam basicamente os nazistas (afinal, eles sempre precisaram de um inimigo para fazer o contraponto ao herói em seus filmes), e ficaria difícil de se fazer uma interpretação casuística de uma obra que colocasse os nazistas no claro papel de vilões.

E esse período parecia iminente.


Rubem L. de F. Auto


Fonte: livro “A Colaboração: o Pacto entre Hollywood e o nazismo”


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