O encontro aconteceu nos salão do Kaiserhof Hotel, em
Berlim. Hitler atravessou o lobby com seus guarda-costas em direção aos dois
jornalistas estrangeiros que o aguardavam. Primeiramente respondeu as perguntas
do jornalista italiano. Terminada a entrevista, virou para a jornalista
norte-americana Dorothy Thompson, também esposa do escritor laureado com um
Nobel, Sinclair Lewis. Evidentemente todas as perguntas haviam sido submetidas
previamente.
Dorothy começou a entrevista: “Quando o senhor chegar ao
poder, como imagino que irá, o que fará pelas massas trabalhadoras da Alemanha?”
Hitler surpreendentemente titubeou um pouco: “Ainda não é
toda a classe trabalhadora que está conosco... precisamos de um novo
espírito... O marxismo minou as massas... Precisamos renascer numa nova
ideologia... Nada de operários, funcionários, socialistas ou católicos... Mas,
sim, alemães!”
Simultaneamente, Hitler batia o punho na mesa, tentando
entrar no conhecido frenesi que lhe acometia durante seus discursos inflamados –
mas não obteve o resultado pretendido.
Próxima pergunta: “Quando chegar ao poder, o senhor irá
abolir a Constituição da República Alemã ?”
Hitler parecia vasculhar o salão à procura de uma multidão para
lhe ouvir: “Vou chegar ao poder legalmente. Vou abolir esse parlamento e em
seguida a Constituição de Weimar. Vou fundar um Estado autoritário, da célula
mais básica à instância mais alta; por toda parte haverá responsabilidade e
autoridade em cima, disciplina e obediência embaixo.”
Última pergunta: “O que o senhor fará para o desarmamento
internacional e como irá lidar com a França ?”
Hitler foi aqui bem mais prudente do que em seus discursos
anteriores sobre esse assunto: “Quando o povo alemão por fim estiver realmente
unido e seguro de sua própria honra, acredito que até a França irá nos respeitar.”
Dorothy então se levantou, conversou rapidamente com dois
assessores de Hitler se despediu.
Alguns meses após, em março de 1932, a entrevista foi
publicada na revista Cosmopolitan, de propriedade do polêmico multimilionário
William R. Hearst. Sua descrição do futuro ditador foi uma bomba jornalística:
“Ao entrar no salão onde fui encontrar Adolf Hitler, fiquei
convencida de estar diante do futuro ditador da Alemanha. Em menos de cinqüenta
segundos, tive certeza de que não. Levou apenas esse tempo para medir a
impressionante insignificância desse homem que tem deixado o mundo tão ansioso.”
Dorothy ridicularizaria o líder alemão sem hesitar: “Ele é
disforme, quase sem rosto, um homem cujo semblante é uma caricatura, cuja
estrutura corporal parece cartilaginosa, sem osso. É inconsequente e volúvel,
mal postado, inseguro. É o protótipo perfeito do Pequeno Homem. Um tufo de
cabelo liso cai sobre uma testa insignificante e levemente retraída. A parte de
trás de sua cabeça é achatada. A cara é larga nas maçãs do rosto. O nariz é
amplo, mas mal formado e sem personalidade. Seus movimentos são desajeitados,
quase indignos e nada marciais. Não há no seu rosto qualquer traço de conflito
interior ou autodisciplina... Tem algo irritantemente refinado nele. Aposto que
curva o mindinho quando toma uma xícara de chá.”
Terminava sua descrição dizendo não crer que aquele homem
não poderia ser empossado ditador da Alemanha. Cria que se tornaria chanceler,
caso fizesse uma coalizão com o Partido do Centro, mas ainda assim seria um chanceler
medíocre.
Os acontecimentos posteriores fizeram com que Dorothy fosse
alvo de todo tipo de chacota, mas Adolf Hitler pareceu ter ficado incomodado
com o artigo. Por um ano recusou-se terminantemente a conceder entrevistas a
jornalistas norte-americanos. Também montou um grupo de trabalho para traduzir
qualquer coisa que Dorothy Thompson escrevesse.
Em agosto de 1934, mais de dois anos após o tragicômico
artigo, Dorothy retornou à Alemanha. De carro, atravessando a fronteira a
partir da Áustria, ela tentava avaliar a situação local após a chegada dos
nazistas ao poder e da eliminação dos opositores políticos. Evidentemente seu
esposo, Sinclair Lewis, ficou desesperado pela segurança de sua esposa. Mas
Dorothy estava irremovível, nunca perderia a chance de fazer essa cobertura.
Por dez dias, Dorothy pode se mover por Berlin, pode
observar a Juventude nazista portando slogans como “Nascemos para morrer pela
Alemanha”. Descobriu também que a série insana de assassinatos que se seguiram
à Noite das Facas Longas foram bem mais aleatórias do que se supunha. Segundo
uma testemunha que ela entrevistou: “Os homens não sabiam por que estavam sendo
baleados. Quanto aos expurgos de Hitler, outra testemunha disse: “Ele nunca
esquece ou perdoa nada.”
Até que o telefone de seu quarto de hotel tocou: um membro
da polícia secreta estava aguardando-a, e entregou-lhe uma carta, onde se lia: “Chegou
ao conhecimento das autoridades que a senhora recentemente entrou mais uma vez
na Alemanha. Em vista das suas numerosas publicações antigermânicas na imprensa
americana, as autoridades alemãs, por razões de autorrespeito nacional, não
poderão mais estender-lhe o direito de hospitalidade. Para evitar uma expulsão
formal, a senhora está, portanto, intimada a interromper sua estadia na
Alemanha o mais rápido possível e sair dos domínios do Reich imediatamente.” E
sem direito a recorrer da decisão...
Ao New York Times, mais tarde, relatando esse episódio,
Thompson escreveu: “Minha ofensa, afinal, foi achar que Hitler é apenas um
homem comum.” Isso era um crime num país em que o líder era considerado uma
espécie de messias enviado por Deus – irônico como a visão antissemita do
nazismo remetia a velhas idéias judaicas.
Após reconhecer que não sofreu punição mais forte por ser
norte-americana, Thompson passou a atuar como a voz antifascista nos EUA. Escrevia
tanto sobre Hitler que seu marido começou a reclamar de ciúmes – como declararia
ironicamente: “Se um dia me divorciar de Dorothy, vou nomear Adolf Hitler como
corréu.”
Thompson assim definiu a força que o movimento nazista teve
nos EUA: “Se você quer avaliar a força do movimento de Hitler, imagine que na
América um orador com a língua do falecido Mr. Bryan e os poderes histriônicos
de Aimee MacPherson, combinados com os dotes publicitários de Edward Bernays e
Ivy Lee, tem que achar um jeito de unir todos os fazendeiros, com todos os
funcionários de colarinho branco desempregados, todas as pessoas com salário
abaixo de U$ 3 mil dólares por ano que perderam sua poupança em quebras
bancárias e da Bolsa e estão sendo pressionadas pelas prestações da geladeira e
do rádio que têm que pagar, pelos ruidosos pregadores evangélicos, pela Legião
Americana, a DAR, a Ku Klux Klan, o WCTU, Matthew Woll, o senador Borah e Henry
Ford – imagine isso e você terá alguma idéia do que o movimento de Hitler na
Alemanha significa.” Em suma: junte todos os descontentes e revoltados contra o
sistema e você terá uma idéia do que foi que pôs Hitler na liderança
autoritária da Alemanha.
Esse texto de sua esposa levou Sinclair Lewis a refletir um
pouco sobre a ameaça do fascismo interno, isto é, sobre a possibilidade de a
maior democracia do mundo se tornar uma ditadura fascista no molde daquelas que
já haviam tomado a Itália e a Alemanha.
E já havia até um nome que parecia materializar esse risco
inimaginável até há pouco: Huey Long. Governador da Lousiana de 1928 a 1932,
era lembrado por políticas que se tornaram bastante populares: forneceu livros
didáticos gratuitamente, melhorou as vias públicas e aumentou a alíquota dos impostos
incidentes sobre gás e petróleo, abundantes no estado.
Mas Long também já exibia seu lado fascista: tirava o
emprego de quem se mostrasse opositor, exigia a provação das leis que propunha
como se fosse obrigação do legislativo acatar suas ordens. Era tratado até mesmo
por apoiadores como um futuro ditador.
Em 1932, Long foi eleito senador. Em 1934, publicou seu
plano “Compartilhe sua riqueza”: propunha que cada família pobre recebesse U$ 5
mil dólares por ano; propunha também estabelecer um teto, acima do qual nenhum
cidadão norte-americano poderia elevar sua fortuna pessoal. Por volta de 1935,
sua sociedade “Compartilhe sua riqueza” tinha cerca de 27 mil filiais e 7,5
milhões de membros.
Sentindo-se popular o bastante, anunciou sua candidatura à
presidência em 1936, como candidato independente.
Em 1935, após refletir sobre esses acontecimentos, Lewis
trouxe à luz sua obra: It Can`t Happen Here (Não pode acontecer aqui). Um
trecho deixa transparecer o clima da obra: “Pela primeira vez na América,
exceto durante a Guerra Civil e a Primeira Guerra Mundial as pessoas tinham
medo de dizer o que vinha às suas línguas, Nas ruas, nos trens, nos cinemas, os
homens olhavam e volta para ver quem poderia estar ouvindo antes de ousar dizer
havia uma seca no Oeste, pois alguém poderia supor que estavam culpando o Chefe
pela seca! A toda hora todo mundo sentia medo, um medo sem nome, onipresente.
Estavam sobressaltados, como se vivessem num bairro castigado por uma epidemia.
Qualquer som repentino, qualquer passo suspeito, qualquer escrita não familiar
num envelope faziam as pessoas estremecerem; e durante meses nunca se sentiram
suficientemente seguras para relaxar e dormir bem. E com a chegada do medo, foi
embora o seu orgulho.” Complementando: “Sob uma tirania, a maioria dos amigos
são vistos como um risco.”
Na obra, Berzelius (ou Buzz) Windrip, senador democrata, é
indicado candidato à presidência em 1936, derrotando Roosevelt, e se torna um
ditador americano. Windrip seguiu a cartilha fascista: recrutou soldados
uniformizados para atacar seus oponentes, assumiu o controle da imprensa, criou
uma saudação oficial, passou a ser designado “O Chefe”. O herói do romance é um
jornalista sexagenário chamado Doremus Jessup, que era inicialmente simpático
ao “Chefe”, mas logo se torna seu maior inimigo.
Essa obra se tornaria objeto de uma disputa interna na MGM, após
adquirirem os direitos de Lewis. Mas disputas internas e envolvendo órgãos de
controle do cinema (além do assassinato de Long, pondo fim a seus planos autoritários) terminaram por deixar o roteiro inédito no cinema até hoje.
Rubem L. de F. Auto
Fonte: livro “A Colaboração: o pacto entre Hollywood e o
nazismo”
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