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terça-feira, 10 de abril de 2018

ZICARTOLA E A RESISTÊNCIA


Na década de 1960, jovens da zona sul carioca e sambistas dividiam mesa num concorrido estabelecimento, no centro do Rio: o icônico Zicartola. Propriedade do cantor Cartola e de sua esposa, Dona Zica, bebia-se ao som de muita música e discutia-se política, claro. Lá, surgiam idéias, e duas dessas idéias atendiam pelo nome de Opinião e Rosa de Ouro, dois dos espetáculos mais importantes da história do Brasil.
Em Rosa de Ouro, Elton Medeiros, Paulinho da Viola e Hermínio Bello de Carvalho cantavam:

“Rosa de Ouro, que tesouro
Ter essa rosa plantada em meu peito!
Rosa de Ouro, que tesouro
Ter essa rosa plantada no fundo do peito!”

Já o espetáculo Opinião deu o pontapé para diversas manifestações que se posicionavam claramente contra o regime recém-inaugurado. Sua estréia se deu em dezembro de 1964, sob a direção de Augusto Boal, no Rio. Era protagonizado por três cantores de peso: Zé Kéti, João do Vale e Nara Leão (esta, depois substituída por Maria Bethânia).
O nome da peça é o mesmo nome de uma canção clássica de Zé Kéti:

“Podem me prender,
Podem me bater,
Podem até deixar-me sem comer,
Que eu não mudo de opinião...”

A presidência do marechal Humberto de Alencar Castello Branco, primeiro ditador do período, iniciou-se com o primeiro dos nefastos Atos Institucionais: dezenas de cassações de mandatos e direitos políticos; milhares de processos político-criminais, prisões, emendas ilegais à Constituição e com a decretação do estado de sítio.

No primeiro carnaval após o golpe, Alcyr Pires Vermelho e Jota Júnior lembraram do símbolo do desmando em “Ato Institucional”:

“O rei momo decretou
O ato institucional:
Fez você, marrom-glacê,
Rainha do meu carnaval.”

Em 1965 houve eleições, a oposição aos novos inquilinos do Planalto obteve vitórias expressivas em diversos estados... Então veio o segundo Ato Institucional, com mais cassações de mandatos, de direitos políticos. E, por fim, extinção dos partidos políticos: agora poderiam existir somente dois, a Arena, governista; e o MDB, oposição.

Zé Kéti não se “aquetou” e compôs mais um samba: “Marcha da democracia”:

“Marchou com Deus pela democracia
Agora chia, agora chia.
Você perdeu a personalidade.
Agora fala em liberdade.”

Conforme os ânimos se acirravam, estudantes, artistas e intelectuais procuravam os festivais da canção. Este seria o local de nascimento do que se denominou MPB: música engajada, politizada, crítica, renovadora.
O primeiro dos festivais ocorreu em 1965, produzido pela TV Excelsior. O vencedor foi Edu Lobo com “Arrastão”, mais um clássico de Vinicius de Moraes:

“Ê! Tem jangada no mar.
Ê! Iê! Iê! Hoje tem arrastão.
Ê! Todo mundo pescar.
Chega de sombra e João.”

Nesse mesmo ano surgiu o programa Jovem Guarda, na TV Record. Apresentado por Roberto Carlos, Erasmo Carlos e Wanderléa terminou por batizar o próprio movimento. A temática girava em torno de amor, celebração da juventude, pareciam pouco interessados em política, não faziam músicas de protesto nem demonstravam vontade de mudar nada.

Inicialmente, parecia que “É proibido fumar”, de Roberto e Erasmo, trouxesse alguma conotação de oposição ao autoritarismo:

“É proibido fumar,
Diz o aviso que eu li.
É proibido fumar,
Pois o fogo pode pegar.”

Mas só falava de beijo mesmo...
O primeiro festival da canção da TV Record foi vencido pela canção “Disparada”, parceria de Geraldo Vandré e Theo de Barros:

“Prepare o seu coração
Pras coisas que eu vou contar,
Eu venho lá do sertão, eu venho lá do sertão,
Eu venho lá do sertão e posso não lhe agradar.”

No auge do autoritarismo, dois movimentos musicais se delineavam: de um lado, estavam as músicas de protesto, representadas por Chico Buarque, Edu Lobo, Geraldo Vandré, Taiguara e outros; de outro, estavam os tropicalistas, que defendiam uma proposta artista mais ampla, falando com o cinema e o teatro. O nome do movimento vem de uma música de Caetano Veloso, o grande arquiteto do movimento, chamada “Tropicália”:

“Sobre a cabeça os aviões,
Sob os meus pés os caminhões.
Aponta contra os chapadões.
Meu nariz.”

No III Festival da TV Globo, de 1968, o destaque foi a composição de Chico Buarque e Tom Jobim, “Sabiá”, clara crítica velada ao regime:

“Vou voltar,
Sei que ainda vou voltar
Para o meu lugar,
Foi lá e é ainda lá...”

Mas nesse mesmo Festival Geral Vandré decidiu ser bem mais explícito em “Pra não dizer que não falei das flores”:

“Vem, vamos embora,
Que esperar não é saber.
Quem sabe faz a hora,
Não espera acontecer.”

A música vencedora foi Sabiá, mas o público não concordou e resolveu contar em coro a música de Vandré.

Em 1968, não apenas no Brasil, mas no mundo, os conflitos entre polícia e manifestantes se multiplicavam. Uma passeata contra o aumento do preço da refeição em um restaurante universitário acabou com a morte de Edson Luís de Lima Souto.

Milton Nascimento e Ronaldo Bastos compuseram “Menino” em homenagem ao jovem:

“Quem cala sobre teu corpo
Consente na tua morte
Talhada a ferro e fogo
Nas profundezas do corte.”

Após ser carregado pelas ruas do Rio, Edson foi velado na Assembléia Legislativa por mais de 50 mil pessoas.

Em 26 de junho, a Passeata dos Cem Mil levou uma multidão às ruas, contra a ditadura.
Caetano Veloso compôs “Enquanto seu lobo não vem”, celebrando as passeatas que se multiplicavam na avenida Presidente Vargas:

“A Estação Primeira da Mangueira passa em ruas largas
(Os clarins da banda militar...)
Passa por debaixo da avenida Presidente Vargas
(Os clarins da banda militar...)”

A gota d`água foi quando o jornalista e deputado federal Márcio Moreira Alves fez um discurso chamando o exército de “valhacouto de torturadores” e pediu às mulheres dos militares uma greve de sexo.

Então, em 13 de dezembro de 1968, Costa e Silva vaixou o Ato Institucional n. 5 (AI-5). A partir daqui, o presidente podia tudo: fechar o Congresso, as Assembléias e Câmaras Municipais; aposentar funcionários públicos, como juízes e militares; suspender habeas corpus; cassar direitos políticos de qualquer pessoa; cassar mandatos...

O primeiro festival após o AI-5, da TV Record, foi vencido por Paulinho da Viola cantando “Sinal Fechado”, mas o espaço desses eventos também estava se reduzindo.

Certa feita, Caetano e Gil estreavam espetáculo cujo cenário era inovador, produzido pelo artista plástico Hélio Oiticica, que ostentava uma faixa onde se lia: “Seja marginal, seja heróis!”. Abaixo, a foto de um cadáver, o bandido “Cara de Cavalo”.

Os problemas foram inevitáveis especialmente após um juiz ter denunciado que ouvira uma versão tropicalista do Hino Nacional, quando na verdade ele havia escutado A Marselhesa. Fato é que a prisão da dupla já era um objetivo do regime. Com esse pretexto, foram presos por dois meses e, depois, partiram para o exílio em Londres.

Antes de deixar o país, Gilberto Gil escreveu “Aquele abraço”, onde “agradeceu” ao bairro de Realengo, local da prisão deles:

“Alô, alô, Realengo,
Aquele abraço”
Alô, torcida do Flamengo,
Aquele abraço!”

Mas o crescimento econômico daquele período era irresistível, e a vitória do Brasil na Copa do México, em 1970, elevou o ufanismo às alturas. Canções como “Eu te amo, meu Brasil”, composta por Dom e interpretada pelo grupo Os Incríveis, se multiplicavam:

“Eu te amo meu Brasil, eu te amo,
Meu coração é verde, amarelo, branco, azul anil.
Eu te amo, meu Brasil, eu te amo.
Ninguém segura a juventude do Brasil.”

Outro sucesso nesse mesmo estilo foi “Pra frente Brasil”, de Miguel Gustavo:

“Noventa milhões em ação,
Pra frente Brasil,
Do meu coração.
Todos juntos, vamos,
Pra frente, Brasil
Salve a seleção.”

Mas os enfrentamentos não pararam de vez. Tanto nas cidades quantro no campo ainda havia enfrentamentos. Em janeiro de 1971, o governo foi forçado a libertar 70 presos em troca do embaixador suíço Enrico Bucher. O líder da operação de seqüestro era “Paulista”, heterônimo de Carlos Lamarca, alto oficial do Exército.

Em sua homenagem, Sérgio Ricardo compôs “Tocaia”:

“Não era noite nem dia,
Era um tempo sem cor nem hora.
Tocaia, tocaia, tocaia.
E Lamarca, à traição,
Cravado por mil centelhas.”

Uma das episódios mais comoventes da ditadura foi o desaparecimento do militante político Stuart Angel, filho da estilista Zuzu Angel. Após saber da morte de seu filho, Zuzu reivindicou o direito de enterrá-lo. Começava então uma luta para também denunciar muitas das atrocidades que ocorriam naqueles anos. Realizou o primeiro desfile de moda na forma de protesto político.

Zuzu foi assassinada na saída do túnel Dois Irmãos, em 1976, Um rapaz que ficou preso com seu filho testemunhou que Stuart foi amarrado na traseira de um jipe e arrastado pelo pátio do quartel da Aeronáutica com a boca preso no cano de escapamento do veículo.

Chico Buarque e Miltinho compuseram “Angélica” para a mãe de Stuart:

“Quem é essa mulher
Que canta sempre esse estribilho?
Só queria embalar meu filho
Que mora na escuridão do mar.”

Em 1974, o cenário econômico dos anos anteriores denunciava que as expectativas anteriores de melhoras no padrão de vida da população não se confirmaram. O salário mínimo estava bastante defasado, embora o PIB continuasse a crescer. O czar da economia Delfim Netto pedia calma: “Temos que esperar o bolo crescer para depois distribuir os pedaços”.

Chico Buarque, usando seu heterônimo Julinho da Adelaide, compôs “Milagre brasileiro”, na qual indagava pela sua parte:

“Cadê o meu?
Cadê o meu, ó meu?
Dizem que você se defendeu.
É o milagre brasileiro.”

O general Ernesto Geisel assumiu a presidência e prometeu distensão, embora entre idas e vindas. Permitiu eleições em 1974, para senadores, deputados e vereadores, com vitória clamorosa do MDB. A sociedade se escandalizava com a brutalidade da morte do jornalista Vladimir Herzog e com a morte do metalúrgico Manuel Fiel Filho.

A cantora Elis Regina cantou “O bêbado e o equilibrista”, de Aldir Blanc e João Bosco. Nessa canção, homenageavam-se o sociólogo Betinho, retornando do exílio; os choros das Marias – mãe de Betinho e de Henfil e também nome da esposa de Manuel – e Clarisses – viúva de Herzog:

“Chora a nossa pátria mãe gentil,
Choram Marias e Clarisses
No solo do Brasil.
Mas sei que uma dor assim pungente
Não pode ser inutilmente...”

Geisel extinguiu o AI-5, mas a Lei de Segurança Nacional ainda se apresentava como uma ameaça. Mas a crise econômica fazia a sociedade civil se organizar contra o regime e a favor da redemocratização.
Foi então que Taiguara, campeão dos compositores censurados, lançou “Outra cena”:

“O pó, o podre, o país,
A madre, o medo, a matriz,
Só não sofreu quem não viu.
Não entendeu quem não quis.”

Em 1978, na região do ABC Paulista, nascia um movimento que seria conhecido como “Novo sindicalismo”. O operário Luiz Inácio da Silva, o Lula, então presidente do Sindicato dos Metalúrgicos de São Bernardo liderou os trabalhadores que cruzaram os braços, desrespeitando a proibição de fazer greve. O Exército enviou aparato militar pesado, mas foram enfrentados por uma multidão de cerca de 120 mil pessoas. O perigo de guerra civil era iminente. Resultado: os militares mandaram os soldados retornarem, trazendo seus blindados e fuzis de volta para a caserna.

O movimento dos operários foi apoiado por artistas. Agnaldo Timóteo, ex-torneiro mecânico, Milton Nascimento, Elis Regina, Novelli e Chico Buarque compuseram “Lina de montagem”:

“Linha, linha de montagem
A cor, a coragem,
Cora coração.
Abecê, abecedário.”

Em agosto de 1979, o presidente João Baptista Figueiredo promulgou a Lei de Anistia: geral e irrestrita. A lei ainda desperta polêmica, pois pareceu uma absolvição de torturadores. Mas, na época, a felicidade dava o tom às comemorações por essa vitória.

Os compositores Paulo César Pinheiro e Maurício Tapajós deram à luz “Tô voltando”:

“Pode ir armando o coreto
E preparando aquele feijão preto.
Eu to voltando.
Põe meia dúzia de Brahma pra gelar.”

Apesar dos contratempos, Figueiredo, de fato, deu continuidade à abertura política iniciada por Geisel. Frases como “jurei fazer deste país uma democracia. Quem for contra a abertura política, eu prendo e arrebento”; ou “prefiro o cheiro dos cavalos ao cheiro do povo”, renderam-lhe uma “homenagem” de Chico Anysio, com a personagem Salomé. Era uma sátira, na qual a personagem criticava ministros, fingindo conversar com João Baptista, o nome do presidente.

Foi nesse período que o humorista e cantor Mussum gravou “Rio antigo”, de Chico Anysio e Nonato Buzar:

“Quero um bate-papo na esquina,
Eu quero o Rio antigo,
Com crianças na calçada,
Brincando sem perigo.”

O último ato terrorista da linha dura ocorreu no Riocentro, no Rio de Janeiro, numa festa para o Dia do Trabalhador. A festa contava com Chico Buarque, Gal Costa, Elba Ramalho, Gonzaguinha e Alceu Valença. Alceu cantava “Coração bobo” quando “de repente, vi uam coisa estranha, que nunca acontecera no meu show: a platéia toda, que estava ligada em mim, olhou para trás. Em seguida voltou-se para mim, como se nada houvesse acontecido”. A bomba que seria estourada no show explodiu no colo do sargento e do oficial do Exército que a carregavam. Alceu continuou sua apresentação:

“Coração-bobo, coração-bola,
Coração-balão, coração-São João.
A gente se ilude dizendo:
‘Já não há mais coração.’”  

Figueiredo também extinguiu a estrutura bipartidária. Daí surgiram PT, PDT, PDS, PMDB, PTB e PP.
Mas a eleição para presidente somente seria direta por alteração da Constituição. A votação foi desanimadora: 298 votos a favor, 65 contra. Não passou; eram necessários 22 votos a mais. A eleição indireta trouxe como adversários Tancredo Neves, do PMDB, e Paulo Maluf, apoiado pelo regime que se extinguia. Tancredo convidou então José Sarney para compor uma chapa forte, já que seu vice era líder do PDS governista.

Tancredo levou a campanha para as ruas, venceu... Mas caiu enfermo logo depois. Após 38 dias de apreensão por todo o país, vinha a fatídica notícia: faleceu sem que sequer tomasse posse no cargo.
Assim, após mais de 20 anos de ditadura, o primeiro presidente eleito do país tinha saído do âmago do regime.

O falecimento de Neves foi cantado por Ilton Nascimento em “Coração de estudante”, dele e de Wagner Tiso:

“Quero falar de uma coisa,
Adivinha onde ela anda?
Deve estar dentro do peito
Ou caminha pelo ar.”

Mas o passado parecia ser varrido, pouco a pouco. Chico cantou esse sentimento em “Vai passar”, composta com Francis Hime:

“Vai passar
Nessa avenida o samba popular.
Cada paralelepípedo da velha cidade
Essa noite vai se arrepiar...”


Rubem L. de F. Auto

Fonte: livro “A República cantada: do Choro ao Funk...”       


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