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sexta-feira, 6 de abril de 2018

GEGÊ DO RÁDIO

Cavalos amarrados no obelisco da Avenida Central, no centro do Rio, gaúchos com lenços vermelhos amarrados no pescoço, esse era o cenário que denunciava a vitória da Aliança Liberal contra os paulistas. Era 3 de novembro de 1930 e Getúlio Vargas era o presidente do Brasil, a despeito de sua derrota no pleito contra o candidato de Washington Luís.

Essa vitória de Gegê, como seria apelidado, foi comemorada na marcha “Gê-é-Gê”, de Lamartine Babo, em que brincava com a filha de Vargas, até então senador:

“Certa menina do Encantado,
Cujo pai foi senador,
Ao ver o povo de encarnado,
Sem se pintar, mudou de cor,
Gê-é-Gê
Tê-u-tu
Ele-i-ó-lio: Getúlio.”

Em 1932 ocorreria o primeiro desfile de escolas de samba na Praça Onze, no Rio. Desfilaram lá Mangueira, Vai como Pode (mais tarde, Portela) e Unidos da Tijuca.

Os primeiros sambas-enredo eram exaltações ufanistas ou homenagens ao Gegê: “Sessenta e um Anos de República”, de Silas de Oliveira e Mano Décio da Viola; “Legado de Getúlio Vargas”, de Silas de Oliveira e Walter Rosa; “Anos trinta, vento sul: Vargas”, de Bala, Jorge Melodia e Jorge Moreira; “O grande presidente”, de Pandeirinho. Este último foi cantado pela Estação Primeira de Mangueira em 1956:

“No ano de 1883,
No dia 19 de abril,
Nascia Getúlio Dornelles Vargas,
Que mais tarde seria o governo do nosso Brasil.”

A década de 1930 viu o nascimento do primeiro produto de massa da era do rádio: Orlando Silva, o Cantor das Multidões. É até mesmo difícil imaginar a popularidade que ele alcançou. Por exemplo, era comum que prefeitos decretassem feriado municipal quando ele se apresentava. Vargas não era diferente da maioria das pessoas nesse aspecto, era fã do cantor e, inclusive, registra-se um pequeno diálogo entre eles: Getúlio esbarrou com Orlando no final de uma apresentação e disse-lhe que desejava ser tão popular quanto ele. Orlando retorquiu, dizendo que ninguém no Brasil tem a popularidade do chefe da nação. Getúlio então respondeu abrindo seu coração: Mas eu tenho inimigos, Orlando. E quem é inimigo da sua bela voz?

Quando aflito, Vargas pedia a Orlando que cantasse sua música predileta, “A jardineira”, de Benedito Lacerda e Humberto Porto:

“Ó jardineira, por que estás tão triste?
Mas o que foi que te aconteceu?
Foi a camélia que caiu do galho,
Deu dois suspiros e depois morreu.”

Após a assunção do cargo, Getúlio seguiu aquele famoso script autocrático: suspendeu a Constituição e fechou o Congresso. Após, destituiu vários governadores por interventores da sua base de apoio – em geral, membros do Movimento Tenentista. Esse episódio foi usado na macha “O teu cabelo não nega”, de Lamartine Babo, João e Raul Valença:

“Tens um sabor bem do Brasil,
Tens a alma cor de anil.
Mulata, mulatinha, meu amor,
Fui nomeado seu tenente interventor.
O teu cabelo não nega, mulata.”

Simultaneamente, em São Paulo, iniciava-se a Revolução Constitucionalista. Fizeram então uma paródia da canção que fazia sucesso no Rio. Chamava-se “O teu governo não nega, Getúlio”:

“O teu governo não nega, Getúlio,
Que foi uma tapeação.
A ditadura não pega, Getúlio,
Faz dela bucha de canhão.”

Ainda em início de governo, Getúlio se preocupava com sua imagem, a ponto de nomear diversos censores, que atuavam como espiões, procurando sinais de cumplicidade com os revoltosos. O cantor Moreira da Silva, o famoso Kid Morengueira, recebeu um puxão de orelhas de Noel Rosa, que trabalhava como contra-regra, porque gesticulava demais enquanto cantava. Noel disse, em tom de gozação: “Olhe lá! Não vá continuar a fazer muitos gestos exagerados no microfone enquanto estiver cantando, senão o ‘meganha’ (censor) prende você sob o pretexto de estar mandando sinais enigmáticos para os paulistas.”

A resistência dos paulistas durou três meses. O conflito foi lembrado no carnaval seguinte, por Braguinha, no seu “Trem blindado”:

“Mulata, quando eu te vi,
Logo pedi anistia,
Pois os teus olhos lançavam
Terrível fuzilaria.”

Em julho de 1934 foi promulgada nova Constituição, Getúlio foi empossado como presidente eleito indiretamente... E Lamartine Babo lançava nova marchinha, “História do Brasil”:

“Quem foi que inventou o Brasil?
Foi seu Cabral!
Foi seu Cabral!
No dia 21 de abril,
Dois meses depois do carnaval.”

Os anos seguintes viram o surgimento de entreveros eleitorais graves. De fato, a eleição de 1938 prevista na Constituição nem mesmo ocorreu. Nássara e Cristóvão Alencar compuseram “A menina Presidência”, ironizando os dois candidatos que mais se destacavam para o pleito: Armando Sales, o “Seu Manduca” e Osvaldo Aranha, o “Seu Vavá”:

“A menina Presidência
Vai rifar seu coração,
E já tem pretendentes,
Todos três, chapéu na mão.
E quem será?

O homem, quem será?
Será Seu Manduca?
Ou será Seu Vavá?”

Mas, em setembro de 1937, foi irradiado para todo o Brasil o malfadado Plano Cohen, conspiração governista que “denunciava” um pretenso ataque comunista contra o Brasil. O autor intelectual do tal Plano foi o capitão Olímpio Mourão Filho, atuante também no golpe de 1964.

Mas deu tudo certo para os conspiradores. Em novembro de 1937 o Congresso foi fechado novamente e se promulgou nova Constituição. Além disso, nada que lembrasse comunismo, cor vermelha era aceito... Nem o vermelho do diabo era mais aceito. Tanto que a marchinha “O diabo sem rabo”, de Haroldo Lobo e Mílton de Oliveira, foi censurada:

“A minha fantasia de diabo
Só falta o rabo, só falta o rabo.
Eu vou botar um anúncio no jornal:
“Precisa-se de um rabo
Pra brincar no carnaval.”

Os ares de eleições democráticas naquele período, só o concurso organizado pelo DIP (Departamento de Imprensa e Propaganda), para escolha da melhor música. Bom, mas o DIP era justamente o órgão de censura, e a composição “Bonde de São Januário”, de Ataulfo Alves e Wilson Batista sofreu pequeno “ajuste” na sua letra:

“Quem trabalha é que tem razão,
Eu digo e não tenho medo de errar.
O bonde de São Januário,
Leva mais um otário,
Sou eu que vou trabalhar.
Antigamente eu não tinha juízo,
Mas hoje eu penso melhor no futuro.
Graças a Deus sou feliz, vivo muito bem.
A boemia não dá camisa a ninguém.”

Na versão oficial, a palavra “otário” foi substituída providencialmente por “operário”.
A mesma dupla seria a autora de “Ó, seu Oscar”, pouco antes, mas sem sofrer podas do DIP:

“Cheguei cansado do trabalho,
Logo a vizinha me falou:
- Ó, seu Oscar,
Tá fazendo meia hora
Que sua mulher foi embora
E um bilhete deixou.
O bilhete assim dizia:
“Não posso mais,
Eu quero é viver na orgia.”

Esse foi o período em que se desenrolou o polêmico embate musical entre Noel Rosa e Wilson Batista. O primeiro golpe foi desferido por Batista com “Lenço no pescoço”:

“Meu chapéu de lado,
Tamanco arrastando,
Lenço no pescoço,
Navalha no bolso...”

Noel aparentemente não gostou da associação entre sambistas e malandros, e respondeu com “Rapaz folgado”:

“Deixa de arrastar o teu tamanco,
Pois tamanco nunca foi sandália.
E tira do pescoço o lenço branco,
Compra sapato e gravata,
Joga fora essa navalha que te atrapalha.”

Batista não deixou Rosa sem resposta, com “Mocinho da Vila”. Noel então compôs uma bela obra-prima, “Feitiço da Vila”, composta com Vadico:

“Lá em Vila Isabel
Quem é bacharel
Não tem medo de bamba,
São Paulo dá café,
Minas dá leite
E a Vila Isabel dá samba.”

Wilson responderia a esse golpe com “Conversa fiada”. Noel então compôs outro clássico, “Palpite infeliz”:

“Quem é você que não sabe o que diz?
Meu Deus do céu, que palpite infeliz!
Salve Estácio, Salgueiro, Mangueira,
Oswaldo Cruz e Matriz,
Que sempre souberam muito bem
Que a Vila não quer abafar ninguém,
Só quer mostrar que faz samba também.”

Wilson ainda comporia “Frankenstein da Vila” e “Terra de cego” mas, de tão fracos, não mereceram resposta do poeta da Vila.    
Mais tarde os dois elaborariam em parceira “Deixa de ser convencida”:

“Deixa de ser convencida,
Todos sabem qual é
Teu velho modo de vida.”

Notando todo o poder que aquele meio de comunicação vinha mostrando, Getúlio ordenou ao DNP (Departamento Nacional de Propaganda) que criasse o programa de transmissão obrigatória “A Hora do Brasil”, atual “A Voz do Brasil”.

Em 1940, Getúlio incorporou a Rádio Nacional ao patrimônio público. Já era uma das principais emissoras de rádio do mundo. Entre seus empregados, estavam alguns dos maiores artistas brasileiros. Um dos principais nomes era Ari Barroso, autor de sambas-exaltação que se tornariam quase verdadeiros hinos nacionais, como “Aquarela do Brasil”, apresentada pela primeira vez em evento beneficente promovido por dona Darcy Vargas, primeira-dama, em 1939, no Teatro Municipal do Rio. Seus versos inesquecíveis:

“Brasil,
Meu Brasil brasileiro,
Meu mulato inzoneiro,
Vou cantar-te nos meus versos.”

Getúlio possuía uma base política de amplo espectro: havia partidários do Eixo e dos Aliados, que volta e meia se enfrentavam abertamente. Uma das vítimas desses embates foi a cantora Carmem Miranda. Ao retornar dos EUA, em 1940, foi vaiada por membros do Estado Novo simpatizantes do Eixo, no Cassino da Urca. A composição “Disseram que voltei americanizada” brincava com esses fatos:

“Disseram que voltei americanizada,
Com o burro do dinheiro, que estou rica,
Que não suporto mais o breque do pandeiro
E fico arrepiada ouvindo uma cuíca.”

No período da II Guerra Mundial, Carmem foi uma das principais artistas utilizadas por Hollywood em sua propaganda contra os fascistas do Eixo e a serviço das potências Aliadas. Seu figurino de falsa baiana foi lançado no filme Banana da Terra, quando cantou “o que é que a baiana tem?”:

“O que é que a baiana tem?
Tem torço de sede? Tem!
Tem brincos de ouro? Tem!
Corrente de ouro? Tem!”

O símbolo da brasilidade se tornou o samba. Durante a I Guerra Mundial, uma sentinela míope, na guarita, ouviu alguém se aproximando da base brasileira em Monte Castelo, na Itália. O homem, temendo ser alvejado, pedia calma ao vigilante e gritava ser brasileiro. Para espantar as dúvidas, a sentina pediu ao homem: “Então faça o seguinte: cante aí algum samba.” Então o homem cantou uma das músicas mais tocadas na década de 1940, “Atire a primeira pedra”, de Mário Lago e Ataulfo Alves:

“Covarde, sei que me podem chamar,
Porque não calo no peito essa dor.
Atire a primeira pedra, ai, ai,
Aquele que não sofreu por amor.”

A resposta emocionada da sentinela mostrava que o homem havia sido bem sucedido no seu intento: “Pode entrar, você é um dos nossos.”

Além do conflito armado contra o fascismo, a música brasileira também ensaiou ataques aos adversários. Afonso Teixeira e Ubirajara Nesdan compuseram “Quem é o tal?”, que atacava Plínio Salgado, líder dos Integralistas e bastante identificado como o Hitler dos trópicos:

“Quem é que usa cabelinho na teste
E um bigodinho que parece mosca,
Só cumprimenta levantando o braço?
É, ê, ê, ê palhaço.”

Os soldados alemães foram ironizados em “Adolfito mata-mouros”, de Alberto Ribeiro e Braguinha.
A vitória dos Aliados foi comemorada no morro da Mangueira com “Comício em Mangueira”, composto por Wilson Batista e Germano Augusto:

“Houve um comício em Mangueira,
O cabo Laurindo falou.
Toda a escola de samba aplaudiu, é.
Toda a escola de samba chorou.”

Após a vitória na Europa contra as ditaduras fascistas, ficava claro que a era Vargas deveria terminar. Manifestações pedindo a volta da democracia se multiplicavam; mas surgia também um movimento conhecido como “queremismo”, que desejava manter o “velho” no Catete.

Uma piada sobre esses fatos dizia que Getúlio havia declarado: “Meu candidato é o Eurico; mas, se houver oportunidade, eu mudo uma letra: eu fico.” Em outubro de 1945, um comício dos queremistas foi proibido no Rio de Janeiro. O presidente, bastante insatisfeito, afastou o chefe de polícia João Alberto do cargo e nomeou em seu lugar seu filho, Benjamin Vargas. Apelido: Beijo. O povo não perdoou:

“Foi seu beijo,
Foi seu beijo,
Foi seu beijo
Que atrapalhou
Um amor de quinze anos.
Beijo dado sem malícia.
(...)
Mas um beijo, pra polícia,
É motivo de cadeia.”

Mas a decisão de pôr um ponto final no período Vargas já estava tomada. Os generais Góes Monteiro e Eurico Gaspar Dutra depuseram Getúlio em outubro de 1945.
Em dezembro, Eurico ganhou o direito ao mandato presidencial.


Rubem L. de F. Auto

Fonte: livro “A República cantada: do choro ao funk...”


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