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quinta-feira, 12 de abril de 2018

COM QUANTOS AFRODESCENDENTES SE FAZ UM PAÍS? VISCONDE DE INHOMIRIM


Um ilustre brasileiro afrodescendente ocupou o cargo de Ministro da Fazenda, não apenas uma, mas duas vezes: no ano de 1858 e entre 1870 e 1871. Chamava-se Francisco Salles Torres Homem.

Foi filho de um padre com uma mulher negra alforriada chamada Maria Patrícia, nasceu no Rio de Janeiro em 29 de janeiro de 1812. Sua mãe também atendia pelo apelido de “Você me Mata” e trabalhava como quitandeira no bairro do Rosário.

Francisco foi condecorado com o título de Visconde de Inhomirim em 1871, no auge das lutas abolicionistas, quando exercia grande influência nas discussões. Formou-se em medicina, na Faculdade de Medicina do Rio de Janeiro, e também estudou direito em Paris. Foi deputado, senador e Conselheiro de Estado.     

Francisco também foi presidente do Banco do Brasil.

Sua defesa intransigente da abolição da escravidão tinha como argumento basilar o fato de aquela instituição ser desumana, não jurídica e anticristã. Defendeu a Lei do Ventre Livre argumentando que ver seres humanos como propriedade é algo que vai contra as leis da razão.  

Faleceu em Paris, em 3 de junho de 1876.   


Rubem L. de F. Auto

Fonte: livro “Ilustres Afrodescendentes na História do Brasil”

COM QUANTOS AFRODESCENDENTES SE FAZ UM PAÍS? CAETANO LOPES DE MOURA


“Sou pardo como foram meu pai e minha mãe”, assim se descreveu em sua biografia o médico brasileiro a ostentar o cargo de médico de Napoleão Bonaparte.

Caetano Lopes de Moura nasceu em Salvador em 1780. Aos 20 anos, matriculou-se na faculdade de medicina da Universidade de Coimbra.

Trabalhou como cirurgião do Corpo de Saúde do Exército Português. Após, conseguiu realizar seu sonho de clinicar na França. Neste país, além de prestar serviços ao Imperador, tornou-se médico disputado pela alta nobreza e pelos altos escalões militares.

Além de clinicar com sucesso, foi também em Paris que Caetano escreveu importantes obras literárias. Por exemplo, foi o médico brasileiro quem publicou a tradução de O Talismã, famoso romance de Walter Scott.
Aos 75 anos, foi nomeado por D. Pedro II Médico Honorário da Imperial Câmara.

Nas palavras do historiador Sílvio Romero: “Caetano Moura foi um dos mais notáveis homens que o Brasil tem possuído. Não foi orador nem político: foi um estudioso que sabia escrever.”


Rubem L. de F. Auto

Fonte: livro “Ilustres Afrodescendentes na História do Brasil”

COM QUANTOS AFRODESCENDENTES SE FAZ UM PAÍS? VISCONDE DE JEQUITINHONHA


Ele foi Ministro da Justiça em 1837 e foi primeiro presidente do Instituto dos Advogados do Brasil, antecessor da OAB.

Nascido Francisco Gomes Brandão, em 23 de março de 1794, em Salvador, filho de um comandante português com uma negra, o advogado e futuro Visconde foi um dos fundadores do IAB, em 1843. Desde suas origens, o IAB previa a criação da Ordem dos Advogados do Brasil, fato que ocorreria em 1930.
Entre as causa que defendeu com mais ardor, estavam a Independência do Brasil e a abolição da escravatura. Francisco defendia o seu país e os símbolos nacionais com tal intensidade que decidiu alterar seu nome após a independência do Brasil. Atenderia agora por Francisco Gê Acayaba de Montezuma, fazendo surgirem em seu nome elementos próprios das línguas indígenas tupi-guarani e não-tupi.

Foi também Ministro plenipotenciário brasileiro na Inglaterra.

Faleceu em 15 de fevereiro de 1870, no Rio de Janeiro.


Rubem L. de F. Auto

Fonte: livro “Ilustrres Afrodescendentes na História do Brasil”


COM QUANTOS AFRODESCENDENTES SE FAZ UM PAÍS? HERMENEGILDO DE BARROS


Em sua obra “Notas sobre o Supremo Tribunal (Império e República)”, o Ministro do STF Celso de Mello desnuda a carreira de um ilustre Ministro afrodescendente, cuja carreira faz interseção com alguns dos momentos mais importantes do Brasil.

Nascido na cidade mineira de Januária, em 31 de agosto de 1866, Hermenegildo de Barros viveu até 24 de maio de 1955.

Foi eleito duas vezes Vice-Presidente do STF: em abril de 1931 e em abril de 1934. Nesse cargo, por dispositivo legal, coube-lhe a missão de ser o primeiro presidente do Tribunal Superior de Justiça Eleitoral (antecessor do TSE).

Foi como tal que Hermenegildo presidiu os trabalhos preparatórios para instalação da Assembléia Constituinte de 1933/1934, responsável por promulgar a Constituição de 1934.      

Curiosidade: sua dedicação profissional está estampada no fato de que nunca esteve ausente em nenhuma sessão do STF... nem no dia do casamento de sua filha.


Rubem L. de F. Auto

Fonte: livro “Ilustrres Afrodescendentes na História do Brasil”


COM QUANTOS AFRODESCENDENTES SE FAZ UM PAÍS? PEDRO LESSA


O primeiro Ministro do STF a exibir traços afrodescendentes atendia por Pedro Lessa. Tomou posse em 20 de novembro de 1907. Também foi membro do Instituto e Geográfico Brasileiro e da Academia Brasileira de Letras.

Sua trajetória, evidentemente, exigiu que suportasse provocações por causa da cor de sua pele, como o deboche do ex-presidente Epitácio Pessoa, quando disse que Pedro “falava grosso para disfarçar a ignorância com o mesmo desastrado ardil com que raspava a cabeça para disfarçar a carapinha”.

Pedro respondia a tudo isso com sua elogiada dedicação e zelo profissionais. Foi incumbido de elaborar estudos para ampliação do escopo jurídico do instituto do habeas corpus, incluindo casos não previstos na Constituição de 1891, o que resultou na criação do mandado de segurança.


Rubem L. de F. Auto


Fonte: livro “Ilustrres Afrodescendentes na História do Brasil”

COM QUANTOS AFRODESCENDENTES SE FAZ UM PAÍS? NILO PEÇANHA


Ele poderia ser chamado de Barack Obama brasileiro, sem medo de se incorrer em erro. Nilo Procópio Peçanha foi deputado, senador e governador do Rio de Janeiro, além de ter ocupado a Presidência da República, a despeito de sua afrodescendência.

Foi Nilo quem criou o Serviço de Proteção ao Índio, cuja direção foi delegada a Cândido Rondon. Foi também quem fundou a Escola de Aprendizes Artífices em Campos, que precedeu o Centro Federal de Educação Tecnológica local. Foi quem assinou a primeira Legislação Nacional de Trânsito. Nilo também apoiou a política de diversificação de culturas agrícolas no país, para diminuir nossa dependência externa.
Também conhecido pelo apelido de “Mestiço do Morro do Coco”, sua descendência africana foi discutida por Gilberto Freyre em Casa Grande e Senzala.

Nilo nasceu em Campos dos Goytacazes, no estado do Rio, em 2 de outubro de 1867. Era filho de Sebastião de Souza Peçanha, um mulato descendente de escravos que trabalhava fabricando pães, daí ser mais conhecido pelo apelido: Sebastião da Padaria. Sua mãe se chamava Joaquina Anália de Sá Freire, pertencente a uma família abastada da região, mas que fugiu de casa para viver seu amor ao lado de Sebastião.    

Nilo era advogado e jornalista e passou a defender tanto a abolição da escravidão quanto a implantação da República. Em 1890, foi eleito deputado da Assembléia Nacional Constituinte pelo Partido Republicano. Após, foi duas vezes eleito deputado estadual pelo Rio de Janeiro entre 1891 e 1903. Foi eleito Presidente do Rio de Janeiro (antiga denominação para governador) em 1903, ocasião em que inaugurou o palácio do Ingá, em Niterói.

Análises posteriores sobre seu período à frente do governo estadual classificaram-na como impecável.

Em 1906 foi eleito Vice-Presidente da República, na chapa de Afonso Pena. Em 1909, com o falecimento do Presidente, Nilo assumiu o mandato. Interessante notar que no período em que esteve como chefe do Executivo, outro afrodescendente ocupavam posição de destaque na Administração Pública: Joaquim Pedro Lessa era Ministro do STF desde 1907.

Nilo foi também Ministro das Relações Exteriores do Brasil.

Faleceu em 31 de março de 1924.


Rubem L. de F. Auto


Fonte: livro “Ilustrres Afrodescendentes na História do Brasil”

quarta-feira, 11 de abril de 2018

O RAP DO REAL E A REALIDADE DOS POBRES


O êxito do Plano Real desde seus primeiros dias podia ser demonstrado pelo aumento do consumo de frango, iogurte, dentaduras e de eletrônicos.

Mas o povo queria algo mais, algo que passaria a ser cada vez mais raro, especialmente nas periferias violentas das grandes cidades: paz e segurança. Nas palavras de Cidinho e Doca no “Rap da felicidade”:

“Eu só quero é ser feliz,
Andar tranquilamente
Na favela onde eu nasci.
É...”

Os anos 1990 marcaram o momento em que a classe média entrou em contato com a nova linguagem musical cada vez mais popular nas favelas e periferias brasileiras: hip hop, funk e rap.

Em meio à proliferação de igrejas evangélicas, sentindo-se na mira do fuzil do traficante, ou do miliciano, ou do policial, jovens pobres passaram a sofrer descontos cada vez maiores na sua expectativa de vida.

Em meio a tudo isso, a cultura de diversão surgida nos bailes periféricos, ao som de raps e funks, despertou críticas cada vez mais contundentes, conflitos com forças policiais e, também, belas iniciativas sociais visando a amenizar o sofrimento daquelas pessoas.

Já em São Paulo, na zona oeste, a partir do bairro de Carapicuíba, quem dava o recado era o grupo de pagode Negritude Junior. A música “Senhor presidente”, de Netinho de Paula e Waguinho, dizia:

“Senhor presidente, espero que se encontre bem,
Pois a nossa gente ainda anda esmagada no trem.
Idosos vendendo pipoca e amendoim.
Que país é este, meu Deus, o que será de mim?”

A estabilização econômica trazida pelo Plano Real tirou 8 milhões de pessoas debaixo da amara linha da pobreza. Mas a contenção de despesas públicas, que retiraram investimentos importantes em infraestrutura, moradia, saneamento básico, legavam milhões a viver em condições degradantes. Chico Science e sua Nação Zumbi fizeram questão de cantar essa realidade em “A cidade”:

“Eu vou fazer uma embolada, um samba, um maracatu,
Tudo bem envenenado, bom pra mim e bom pra tu,
Pra gente sair da lama e enfrentar os urubus.”

A alta popularidade de FHC – além de muita propina comprovadamente paga - rendeu-lhe a aprovação da emenda que permitia uma reeleição do chefe do executivo. As eleições de 1998 trouxeram novamente o embate entre o FHC do Plano Real e o Lula das reivindicações de fundo social. Novamente deu FHC.

Já Pedro Luís preferiu compor o “Rap do real” e denunciar o subemprego que solapava os centros urbanos com sua miríade de vendedores ambulantes:

“Com quantos reais se faz uma realidade?
Preciso muito sonho pra sobreviver numa cidade
...
Um real aí, é um real.”   

Um dos símbolos dos mandatos de FHC foram as privatizações. Embora houvesse denúncias e muita disputa política no meio, vendas como a da Vale do Rio Doce não foram impedidas pela Justiça.

A banda Mundo Livre S/A compôs “Negócio do Brasil” acerca do tema:

“Pde ser às claras,
Ninguém vai notar.
Mesmo que algo vaze, vai evaporar.
Sua Excelência autoriza aquela venda...”

No campo, paz também era uma palavra distante da realidade. O pior dos episódios ocorreu em Eldorado dos Carajás, no Pará, em 1996. MST e Polícia Militar se enfrentaram com um trágico resultado: 19 trabalhadores mortos, dezenas de feridos. Os responsáveis somente foram condenados em 2012.

O massacre rendeu o lançamento do livro Terra, em 1997, do fotógrafo Sebastião Salgado e do escritor ganhador do Prêmio Nobel José Saramago. A obra contou com um CD composto por Chico Buarque. Uma das composições era “Assentamento”, em que o cantor se inspirou em Guimarães Rosa para defender a reforma agrária:

“Quando eu morrer,
Cansado de guerra,
Morro de bem
Com a minha terra.”

O fim do segundo mandato de FHC não foi tão feliz quanto o do primeiro. Denúncias de corrupção, greves por todo o país, alta taxa de desemprego e uma pressão por políticas na área social se somavam, não lhe permitindo fazer seu sucessor.

O rapper Gog tentou mandar o recado a Vossa Excelência:

“Ei, presidente, li um dos seus livros,
Um best-seller do socialismo,
Confusões, relatos sinceros,
Um defensor da foice e do martelo, ham...”

Em 2002, o candidato vitorioso foi, após três tentativas mal sucedidas, Lula. O vice foi o empresário e senador do PL, José Alencar.

O lema inicial do governo era o fim da fome. Criaram então programa Fome Zero. Os passos iniciais foram trôpegos, envolvendo muitas denúncias de aplicação irregular de recursos.

A dupla Caju e Castanha também denunciaram em “A Fome Zero zerou”:

“Peço ao nosso presidente que nos dê mais atenção,
Essa tal de Fome Zero tá uma esculhambação,
Arrecada as comida, mas não chega pro povão!”

O governo então criou o Programa Bolsa Família, unindo iniciativas que preexistiam no governo anterior, mas agora com mais recursos disponíveis. Tornou-se então marca social do governo Lula. O aumento dos recursos disponíveis aos mais pobres ajudou a impulsionar a venda de alimentos, roupas e eletrodomésticos, sobretudo no Norte, Nordeste e nas periferias das grandes cidades.

O grande problema do governo Lula, rapidamente, passou a ser a governabilidade, especialmente após as primeiras denúncias de corrupção envolvendo os Correios e Roberto Jefferson, do PTB, um dos muitos nomes reunidos na base de apoio do PT com o fim de ampliá-la. Sendo o homem forte da EBCT e estando acuado pelas denúncias, Jefferson então denunciou a existência do Mensalão – esquema de compra de apoio político para fazer passarem projetos de lei de interesse do Executivo.

As denúncias no âmbito do Mensalão levaram Charles Gavin, Paulo Miklos e Tony Bellotto, do Titãs, a comporem a irascível “Vossa Excelência”:

“Estão nas mangas
Dos senhores ministros.
Nas capas
Dos senhores magistrados.
Nas golas
Dos senhores deputados.”

Mas a esperança de que um novo país estava sendo gestado persistia. Bono Vox, líder da banda U2, inclusive improvisou uma versão de “No woman, no cry”, de Bob Marley, com essa temática:

“I remember Carnival
In the beautiful city of Salvador.
A new Brazil is coming.”

O segundo mandato de Lula, recebido em 2006, veio acompanhado de uma cobrança pública do rapper Marcelo D2 em sua “Carta ao presidente”, composta com Renato Venom:

“O Brasil quer mudar, crescer, pacificar,
Com uma jsutiça social que tanto alguns tentam conquistar.
Se em algum momento algum político conseguiu despertar a esperança,
O final da história é uma lambança.
...
Sem mais delongas,
Não repare o sorriso amarela,
Um abraça do ainda amigo
Marcelo.”

Em 2007, é lançado o PAC – Programa de Aceleração do Crescimento – que previa investimentos em infraestrutura por todo o país. A coordenação do Programa ficou a cargo da Ministra Dilma Rousseff. Esta, venceria a eleição seguinte, na onda de popularidade de Lula.

A transmissão do comando do país veio junto com o “Funk do Lula”, pelo grupo Gaiola das Popozudas:

“Conheci o Lula no Complexo do Alemão,
E ele não tirou o olho do meu popozão
Com todo respeito, senhor presidente,
O senhor gostou de mim, e o seu olhar não mente
Mas, senhor presidente, meu papo é outro
Sou popozuda e represento a voz do morro
Luis Inácio é do povo, e escuta o que ele diz
A favela tem muita gente, que só quer é ser feliz
Que Dilma que nada! Me leva pra Casa Civil
Vou por o som na caixa e balançar o quadril
O funk não é problema, para alguns jovens é a solução
Quem sabe algum dia viro ministra da Educação.”

A eleição de Dilma foi acompanhada de um episódio até então inusitado. O candidato José Serra foi atingido por uma bolinha de papel, que foi usada de todas as maneiras possíveis pela imprensa com o fito de prejudicar a campanha da petista.

Tantinho da Mangueira não se conteve e compôs com Sérgio Procópio “Bolinha de papel”:

“Deixa de ser enganador,
Pois bolinha de papel
Não fere nem causa dor.”

A eleição de uma mulher para a presidência da República foi adiantada em algumas letras, como a “Mulher na Presidência”, de Aniceto do Império:

“Se acaso acontecer
Uma mulher na Presidência?
É sapiência,
É sapiência.”

O Ultraje a Rigor também gravou “Eu gosto de mulher”:

“Mulher de corpo inteiro.
Não fosse por mulher, eu nem era roqueiro.
Mulher que se atrasa, mulher que vai na frente,
Mulher dona de casa, mulher pra presidente.”

A trilha sonora do mandato de Dilma foi o tecnobrega e o sertanejo universitário, qeu invadiram o país. O primeiro surgiu no Pará, no encalço da banda pioneira Calypso. O segundo era uma mistura de sertanejo com axé e pop rock.

Dilma, embora eleita por conta da popularidade do antecessor, mostrou-se o oposto de Lula. Era dura nas negociações, detestava fisiologismo, demitiu diversos ministros envolvidos em escândalos, dava broncas, cobrava eficiência. Aos poucos imprimia sua própria personalidade a seu mandato. Se por um lado os resultados econômicos decepcionavam, por outro sua marca na área social se tornava indelével.
Os níveis de emprego mostravam surpreendentes 19 milhões de vagas criadas em 10 anos, estando 48 milhões de brasileiros com suas Carteiras de Trabalho assinadas.

Outra medida de Dilma foi aventurar-se pelos mares revoltos da Comissão da Verdade, que apurava muitos dos crimes cometidos durante a ditadura iniciada em 1964. Desnecessário dizer o descontentamento que tomou conta dos quartéis e que atingiu também parte da classe política.

Em julho de 2013, a crise política insipiente tomou ares dramáticos. Um multidão invadiu as ruas, reivindicando melhorias nos serviços públicos e protestando contra a corrupção. Mobilizados a partir da internet, ainda é difícil traçar o perfil desses manifestantes do século XXI.

A trilha sonora agora era a música “Vem pra rua”, composta pelo grupo O Rappa para uma campanha publicitária com o tema da Copa do Mundo e das Confederações:

“Vem, vamos com a gente,
Vem torcer, bola pra frente.
Sai de casa, vem pra rua,
Pra maior arquibancada do Brasil.”

Por fim, no período mais recente, multiplicam-se reclamações sobre uma eventual “judicialização” da política, quando vemos decisões de tribunais tomando o lugar das decisões políticas tomadas pelas vias tradicionais.

A esse respeito, vem à mente a música “Meu bom juiz”, de Beto Sem Braço e Serginho Meriti, imortalizada na voz de Bezerra da Silva:

“Aaah, meu bom juiz, meu bom juiz,
Não bata esse martelo nem dê a sentença
Antes de ouvir o que o meu samba diz,
Pois este homem não é tão ruim quanto o senhor pensa.”


Rubem L. de F. Auto

Fonte: livro “A República cantada: do choro ao funk...”   


AUMENTA O SOM, QUE ISSO É BROCK!


O período de José Sarney na presidência do Brasil foi o auge de um movimento a que o jornalista Arthur Dapieve chamou de “Brock”, o rock brasileiro, de volta após a explosão da jovem guarda e da repressão dos anos de chumbo.

A expressão que resumia bem aquele movimento musical e cultural era emprestada do nome de um dos maiores sucessos da banda Legião Urbana: Geração Coca-Cola. As letras tocavam as angústias e ansiedades que afligiam toda aquela geração.

Os anos 1980 foram bem caracterizados pelo fantasma da inflação. Ministros e planos econômicos eram nocauteados um a um pelo dragão da inflação. Esses fatos inspiraram a banda Titãs a se revoltar contra o capitalismo e todo aquele economês indevassável. “Homem Primata”, de Sérgio Britto, Marcelo Fromer, Nando Reis e Ciro Pessoa dizia assim:

“O homem criava
E também destruía.
Homem primata,
Capitalismo selvagem.”

Mas antes disso, ainda em 1983, quando a campanha pelas Diretas Já ainda não se tinha afundado no mar dos conchavos políticos, a banda irreverente Ultraje a Rigor lançou o grande hit “Inútil”, de Roger Moreira. Era a fotografia de um país com baixa auto-estima e que cambaleava cheio de incertezas em direção ao futuro:

“A gente não sabemos
Escolher presidente.
A gente não sabemos
Tomar conta da gente.
...
Inúteu!
A gente somos inúteu!”

Mais tarde, foi a vez de Lobão atacar Sarney em “O eleito”, composta com Bernardo Vilhena:

“O palácio é o refúgio mais que perfeito
Para os seus desejos mais que secretos.
Lá ele se imagina o eleito,
Sem nenhuma eleição por perto.”


E Renato Russo fazia coro paras as insatisfações de uma nação atormentada política e economicamente:

“Ninguém respeita a Constituição,
Mas todos acreditam no futuro da nação.
Que país é esse?
Que país é esse?”

Cazuza também deu seu tostão, em “Brasil”, composta ao lado de George Israel e Nilo Romero:

“Brasil!
Qual é o teu negócio?
O nome do teu sócio?
Confia em mim!”

E as insatisfações com as ideologias que, pouco a pouco, desvaneciam, foram cantada em “Ideologia”, de Cazuza e Frejat:

“Meu partido
É um coração partido
...
Ideologia!
Eu quero uma pra viver.”

Após distribuir concessões de rádio e TV a torto e a direito, Sarney conseguiu costurar o acordo que estendeu seu tempo no Alvorada de quatro para cinco anos, ao contrário do que previra a Carta Maior.
Pois bem, Gonzaguinha cantou conta tudo isso em “É”:

“É!
A gente quer viver pleno direito,
A gente quer viver todo respeito,
A gente quer viver uma nação.
A gente quer ser um cidadão.”

Ainda tateando os novos limites permitidos no pós-repressão, operários da CSN, em Volta Redonda, iniciaram um processo de renegociação salarial, que evoluiria para confronto aberto entre operários e a polícia militar. O conflito terminou com três trabalhadores mortos.

Quem cantou mais alto essa tragédia não foi nenhum rockeiro empedrenido, mas os sambistas Arlindo Cruz, Marquinho PQD e Franco, em “Sonhando sou feliz”, do Cacique de Ramos:

“Se andam espalhando bomba,
Um bom malandro não tomba,
Dá uma volta redonda e acerta o país.
Tô sonhando, mas sou feliz.”

O processo de distensão política seguia ritmos diferentes no campo e nas cidades. Chico Mendes, ambientalista e presidente do Sindicato dos Trabalhadores de Xapuri, no Acre, foi assassinado, num crime que chocou grande parte do país, que apoiava sua luta pela preservação da floresta amazônica e, consequentemente, do sustento de quem vivia da extração do látex.

O grupo de reggae Cidade Negra cantou aquela dor em “Assassinatureza”:

“Ei, você aí,
Você que está matando as ervas,
As árvores,
Poluindo os rios
E assassinando os animais.”

O período final da era Sarney causava tal perplexidade nas pessoas, pelos absurdos que se noticiavam, que a inspiração era inevitável.

Os Paralamas do Sucesso compuseram “Perplexo”, de Herbert Vianna, Bi Ribeiro e João Barone:

“Tentei te entender,
Você não soube explicar.
Fiz questão de ir lá ver,
Não consegui enxergar.”

Em 1989, após um interstício compulsório de cerca de trinta anos, o Brasil ia às urnas. A eleição para Presidente da República foi ao segundo turno, quando se enfrentaram os candidatos Lula, do PT, herdeiro das lutas sindicais dos anos 1980; e Fernando Collor, do PRN, filho do senador udenista Arnon de Mello, prefeito biônico (isto é, não eleito) de Maceió, apoiador de Maluf contra Tancredo, proprietário da retransmissora da TV Globo no seu estado e eleito governador de Alagoas com apoio de Sarney, quando o Plano Cruzado lhe rendia popularidade.

Bom, como sabemos, Collor sagrou-se vencedor, por uma margem apertada de 4 milhões de votos.   
A quinze dias das eleições, o boco de carnaval Suvaco de Cristo, cantou indagando sobre o futuro, em “República dos vira-latas”, composta por Lenine e Bráulio Tavares:

“E a República?
República dos vira-latas,
Das concordatas, do economês.
República do golpe baixo,
É muito escracho com a cara de vocês.”

Já a escola de samba Unidos do Cabuçu trazia a dúvida de quem não sabia se depositara seu voto no candidato certo. Seu enredo “Será que votei certo para presidente?” cantava em prece:

“Se votei certo, só mesmo o tempo dirá.
Peço a Deus, sinceramente,
Que ilumine o presidente
Desde agora, desde já.”

Pouco após os questionamentos da agremiação foram respondidos: o Plano Collor confiscou a poupança popular, extinguiu o cruzado e retornou o cruzeiro como moeda do país.
O Gaúcho da Fronteira cantava um tanto apreensivo, em “Éramos felizes e não sabíamos”:

“Tia Zélia disse e falou:
‘Não é como antigamente,
O povo que se prepare,
No pacote tem presente.”

Os anos Collor marcaram a elevação do “axé music” e os trios elétricos baianos a símbolos maiores do carnaval. Embora tão popular quanto as marchinhas e o forró, raramente ouviam-se músicas de temática políticas. A exceção eram os grupos afro, que cantavam a africanidade, como o grupo Olodum em “Protesto Olodum”, de Tatau, que lembrava Mandela:

“Desmond Tutu,
Contra o apartheid lá na África do Sul,
Vem saudando o Nelson Mandela,
O Olodum.”

Voltando ao presidente, a imagem que ele parecia querer cultivar era a de um homem jovial, atlético, destemido – pilotava Jet-ski, moto, lutava caratê etc.

Lobão e Tavinho então compuseram “Presidente mauricinho”, uma pequena “homenagem” ao presidente collorido:

“O presidente sai de moto
Pelo eixão monumental.
O presidente anda a mil
No país do carnaval.”

Mas nenhuma dessas canções deveria fazer parte da Playlist da Casa da Dinda, residência do clã de Alagoas. A trilha sonora dali girava em torno da música sertaneja, sendo Leandro e Leonardo dois dos músicos mais requisitados do local. Aliás, foi o mesmo período em que Chitãozinho e Chororó e outras duplas sertanejas expulsaram o “Brock” da mídia.

Logo após, os reais resultados do Plano Collor vieram à tona, com o dragão da inflação voltando a atemorizar os brasileiros. A crise política explodiu com as revelações bombásticos do irmão do presidente, jogando no ventilador todas as falcatruas envolvendo Fernando, PC Farias e diversos membros do governo.
O rapper Gabriel o Pensador, então, trazia à reflexão seus versos de “Lavagem cerebral”:

“Me responda se você discriminaria
Um sujeito com a cara do PC Farias.
Não, você não faria isso, não.
Você aprendeu que o preto é ladrão.”

Instaurou-se então uma CPI, para investigar o “Esquema PC”. Em setembro de 1992 foi encaminhado o pedido de impeachment de Collor. O “Fora Collor” tomou conta das ruas e a televisão incentivava aquele clima político exibindo a minissérie “Anos Rebeldes”, que trazia como trilha sonora “Alegria, Alegria”, de Caetano Veloso:

“Caminhando contra o vento,
Sem lenço e sem documento...”

A condenação de Collor foi comemorada por Gabriel o Pensador em “Tô feliz (Matei o presidente)”:

“E o velório vai ser chique.
Sem falta eu to lá.
É, ouvi dizer que é o PC que vai pagar.”

A presidência foi sucedida por Itamar Franco. Quase diametralmente oposto ao antecessor, Itamar era pacato, um pouco mulherengo, às vezes ranzinza e gostava de fusquinha. Essa última característica dele foi cantada pelo Ultraje a Rigor em “Fusquinha do Itamar”:

“Primeiro foi o fusca do Juscelino,
Depois veio o DKW, o Simca Chambord.
Tudo isso sem falar no tremendo tapa que eu levei
Com a história da carroça do Collor.
E agora isso!”

Os escândalos de Collor do “Esquema PC” foram sucedidos pelas não menos escandalosas denúncias envolvendo a Comissão de Orçamento. Entre 1993 e 1994, deputados e senadores conhecidos em conjunto como “Anões do Orçamento” responderam por crimes de recebimento de propina para favorecer empresas. Um deles, João Alves, “ganhou” 121 vezes na loteria. Ao final, vários deles foram cassados.

Foi então que Lula, presidente do PT, talhou uma de suas frases mais famosas: O Congresso tem 300 picaretas com anel de doutor. A banda Paralamas do Sucesso usou esse mote para sua composição “Luiz Inácio (300 picaretas)”. Resultado: shows da banda foram cancelados em Brasília, rádios proibiram a execução da música. Mas a música fez parte do CD “Vamo batê lata”:

“Luiz Inácio falou, Luiz Inácio avisou
São trezentos picaretas com anel de doutor
Luiz Inácio falou
Luiz Inácio avisou.”

O cantor Bezerra da Silva foi bem lembrado naqueles anos. Ainda em 1989, antes da primeira eleição presidencial pós-ditadura, ele lançou “Candidato caô cão”, de Walter Meninão e Pedro Butina:

“Ele subiu o morro sem gravata,
Dizendo que gostava da raça.
Foi lá na tendinha,
Bebeu cachaça,
E até bagulho fumou.”

Em 1992, quando da queda do primeiro presidente eleito no pós-ditadura, lançou com enorme sucesso “Se não fosse a ajuda da rapaziada”, de Bolão Sax Tenor e Rabanada:

“É o candidato cão,
Só visita o morro Quando é tempo de eleições.
Chaga dando beijos e abraços,
Tapinha nas costas e aperto de mão.”

Itamar sobreviveu bem a todos os escândalos surgidos durante seu mandato por causa de sua imagem de correto e austero. Uma de suas medidas foi nomear o senador Fernando Henrique para o ministério da Fazenda. Foi então lançado o Plano Real, com enorme sucesso no controle da inflação.

Mas nem tudo eram flores. As mazelas ainda existiriam por muito tempo. Em 1994 mesmo, ano de lançamento do Plano Real, a banda Skank lançou “Esmola”, de Samuel Rosa e Chico Amaral:

“Uma esmola, pelo amor de Deus,
Um escola,
Meu! Por caridade!
Uma escola
Pro ceguinho, pro menino.
Em toda esquina,
Tem gente só pedindo.”

A estabilização econômica decorrente do Plano Real ajudou a impulsionar o crescimento do crédito para o consumo no Brasil. O grupo Mamonas Assassinas cantou esse fenômeno em “Chopis centis”, de Dinho e Julio Rasec:

“Quanta gente
Quanta alegria,
A minha felicidade
É um crediário
Nas Casas Bahia.”

O sucesso de seu Pano garantiu a FHC sua eleição como Presidente, sem concorrente que o ameaçasse. No ano de seu primeiro carnaval no gabinete, a escola de samba Unidos de Vila Isabel cantou “Cara e coroa, as duas faces da moeda”, relembrando nossas idas e vindas monetárias:

“D. João trouxe o progresso,
A inflação, deixou de herança,
No real, realidade é a esperança.
...
No azul desse mar eu faço o meu carnaval
Com a Vila levantando o meu astral.”


Rubem L. de F. Auto

Fonte: livro “A República cantada: do choro ao funk...”


terça-feira, 10 de abril de 2018

ZICARTOLA E A RESISTÊNCIA


Na década de 1960, jovens da zona sul carioca e sambistas dividiam mesa num concorrido estabelecimento, no centro do Rio: o icônico Zicartola. Propriedade do cantor Cartola e de sua esposa, Dona Zica, bebia-se ao som de muita música e discutia-se política, claro. Lá, surgiam idéias, e duas dessas idéias atendiam pelo nome de Opinião e Rosa de Ouro, dois dos espetáculos mais importantes da história do Brasil.
Em Rosa de Ouro, Elton Medeiros, Paulinho da Viola e Hermínio Bello de Carvalho cantavam:

“Rosa de Ouro, que tesouro
Ter essa rosa plantada em meu peito!
Rosa de Ouro, que tesouro
Ter essa rosa plantada no fundo do peito!”

Já o espetáculo Opinião deu o pontapé para diversas manifestações que se posicionavam claramente contra o regime recém-inaugurado. Sua estréia se deu em dezembro de 1964, sob a direção de Augusto Boal, no Rio. Era protagonizado por três cantores de peso: Zé Kéti, João do Vale e Nara Leão (esta, depois substituída por Maria Bethânia).
O nome da peça é o mesmo nome de uma canção clássica de Zé Kéti:

“Podem me prender,
Podem me bater,
Podem até deixar-me sem comer,
Que eu não mudo de opinião...”

A presidência do marechal Humberto de Alencar Castello Branco, primeiro ditador do período, iniciou-se com o primeiro dos nefastos Atos Institucionais: dezenas de cassações de mandatos e direitos políticos; milhares de processos político-criminais, prisões, emendas ilegais à Constituição e com a decretação do estado de sítio.

No primeiro carnaval após o golpe, Alcyr Pires Vermelho e Jota Júnior lembraram do símbolo do desmando em “Ato Institucional”:

“O rei momo decretou
O ato institucional:
Fez você, marrom-glacê,
Rainha do meu carnaval.”

Em 1965 houve eleições, a oposição aos novos inquilinos do Planalto obteve vitórias expressivas em diversos estados... Então veio o segundo Ato Institucional, com mais cassações de mandatos, de direitos políticos. E, por fim, extinção dos partidos políticos: agora poderiam existir somente dois, a Arena, governista; e o MDB, oposição.

Zé Kéti não se “aquetou” e compôs mais um samba: “Marcha da democracia”:

“Marchou com Deus pela democracia
Agora chia, agora chia.
Você perdeu a personalidade.
Agora fala em liberdade.”

Conforme os ânimos se acirravam, estudantes, artistas e intelectuais procuravam os festivais da canção. Este seria o local de nascimento do que se denominou MPB: música engajada, politizada, crítica, renovadora.
O primeiro dos festivais ocorreu em 1965, produzido pela TV Excelsior. O vencedor foi Edu Lobo com “Arrastão”, mais um clássico de Vinicius de Moraes:

“Ê! Tem jangada no mar.
Ê! Iê! Iê! Hoje tem arrastão.
Ê! Todo mundo pescar.
Chega de sombra e João.”

Nesse mesmo ano surgiu o programa Jovem Guarda, na TV Record. Apresentado por Roberto Carlos, Erasmo Carlos e Wanderléa terminou por batizar o próprio movimento. A temática girava em torno de amor, celebração da juventude, pareciam pouco interessados em política, não faziam músicas de protesto nem demonstravam vontade de mudar nada.

Inicialmente, parecia que “É proibido fumar”, de Roberto e Erasmo, trouxesse alguma conotação de oposição ao autoritarismo:

“É proibido fumar,
Diz o aviso que eu li.
É proibido fumar,
Pois o fogo pode pegar.”

Mas só falava de beijo mesmo...
O primeiro festival da canção da TV Record foi vencido pela canção “Disparada”, parceria de Geraldo Vandré e Theo de Barros:

“Prepare o seu coração
Pras coisas que eu vou contar,
Eu venho lá do sertão, eu venho lá do sertão,
Eu venho lá do sertão e posso não lhe agradar.”

No auge do autoritarismo, dois movimentos musicais se delineavam: de um lado, estavam as músicas de protesto, representadas por Chico Buarque, Edu Lobo, Geraldo Vandré, Taiguara e outros; de outro, estavam os tropicalistas, que defendiam uma proposta artista mais ampla, falando com o cinema e o teatro. O nome do movimento vem de uma música de Caetano Veloso, o grande arquiteto do movimento, chamada “Tropicália”:

“Sobre a cabeça os aviões,
Sob os meus pés os caminhões.
Aponta contra os chapadões.
Meu nariz.”

No III Festival da TV Globo, de 1968, o destaque foi a composição de Chico Buarque e Tom Jobim, “Sabiá”, clara crítica velada ao regime:

“Vou voltar,
Sei que ainda vou voltar
Para o meu lugar,
Foi lá e é ainda lá...”

Mas nesse mesmo Festival Geral Vandré decidiu ser bem mais explícito em “Pra não dizer que não falei das flores”:

“Vem, vamos embora,
Que esperar não é saber.
Quem sabe faz a hora,
Não espera acontecer.”

A música vencedora foi Sabiá, mas o público não concordou e resolveu contar em coro a música de Vandré.

Em 1968, não apenas no Brasil, mas no mundo, os conflitos entre polícia e manifestantes se multiplicavam. Uma passeata contra o aumento do preço da refeição em um restaurante universitário acabou com a morte de Edson Luís de Lima Souto.

Milton Nascimento e Ronaldo Bastos compuseram “Menino” em homenagem ao jovem:

“Quem cala sobre teu corpo
Consente na tua morte
Talhada a ferro e fogo
Nas profundezas do corte.”

Após ser carregado pelas ruas do Rio, Edson foi velado na Assembléia Legislativa por mais de 50 mil pessoas.

Em 26 de junho, a Passeata dos Cem Mil levou uma multidão às ruas, contra a ditadura.
Caetano Veloso compôs “Enquanto seu lobo não vem”, celebrando as passeatas que se multiplicavam na avenida Presidente Vargas:

“A Estação Primeira da Mangueira passa em ruas largas
(Os clarins da banda militar...)
Passa por debaixo da avenida Presidente Vargas
(Os clarins da banda militar...)”

A gota d`água foi quando o jornalista e deputado federal Márcio Moreira Alves fez um discurso chamando o exército de “valhacouto de torturadores” e pediu às mulheres dos militares uma greve de sexo.

Então, em 13 de dezembro de 1968, Costa e Silva vaixou o Ato Institucional n. 5 (AI-5). A partir daqui, o presidente podia tudo: fechar o Congresso, as Assembléias e Câmaras Municipais; aposentar funcionários públicos, como juízes e militares; suspender habeas corpus; cassar direitos políticos de qualquer pessoa; cassar mandatos...

O primeiro festival após o AI-5, da TV Record, foi vencido por Paulinho da Viola cantando “Sinal Fechado”, mas o espaço desses eventos também estava se reduzindo.

Certa feita, Caetano e Gil estreavam espetáculo cujo cenário era inovador, produzido pelo artista plástico Hélio Oiticica, que ostentava uma faixa onde se lia: “Seja marginal, seja heróis!”. Abaixo, a foto de um cadáver, o bandido “Cara de Cavalo”.

Os problemas foram inevitáveis especialmente após um juiz ter denunciado que ouvira uma versão tropicalista do Hino Nacional, quando na verdade ele havia escutado A Marselhesa. Fato é que a prisão da dupla já era um objetivo do regime. Com esse pretexto, foram presos por dois meses e, depois, partiram para o exílio em Londres.

Antes de deixar o país, Gilberto Gil escreveu “Aquele abraço”, onde “agradeceu” ao bairro de Realengo, local da prisão deles:

“Alô, alô, Realengo,
Aquele abraço”
Alô, torcida do Flamengo,
Aquele abraço!”

Mas o crescimento econômico daquele período era irresistível, e a vitória do Brasil na Copa do México, em 1970, elevou o ufanismo às alturas. Canções como “Eu te amo, meu Brasil”, composta por Dom e interpretada pelo grupo Os Incríveis, se multiplicavam:

“Eu te amo meu Brasil, eu te amo,
Meu coração é verde, amarelo, branco, azul anil.
Eu te amo, meu Brasil, eu te amo.
Ninguém segura a juventude do Brasil.”

Outro sucesso nesse mesmo estilo foi “Pra frente Brasil”, de Miguel Gustavo:

“Noventa milhões em ação,
Pra frente Brasil,
Do meu coração.
Todos juntos, vamos,
Pra frente, Brasil
Salve a seleção.”

Mas os enfrentamentos não pararam de vez. Tanto nas cidades quantro no campo ainda havia enfrentamentos. Em janeiro de 1971, o governo foi forçado a libertar 70 presos em troca do embaixador suíço Enrico Bucher. O líder da operação de seqüestro era “Paulista”, heterônimo de Carlos Lamarca, alto oficial do Exército.

Em sua homenagem, Sérgio Ricardo compôs “Tocaia”:

“Não era noite nem dia,
Era um tempo sem cor nem hora.
Tocaia, tocaia, tocaia.
E Lamarca, à traição,
Cravado por mil centelhas.”

Uma das episódios mais comoventes da ditadura foi o desaparecimento do militante político Stuart Angel, filho da estilista Zuzu Angel. Após saber da morte de seu filho, Zuzu reivindicou o direito de enterrá-lo. Começava então uma luta para também denunciar muitas das atrocidades que ocorriam naqueles anos. Realizou o primeiro desfile de moda na forma de protesto político.

Zuzu foi assassinada na saída do túnel Dois Irmãos, em 1976, Um rapaz que ficou preso com seu filho testemunhou que Stuart foi amarrado na traseira de um jipe e arrastado pelo pátio do quartel da Aeronáutica com a boca preso no cano de escapamento do veículo.

Chico Buarque e Miltinho compuseram “Angélica” para a mãe de Stuart:

“Quem é essa mulher
Que canta sempre esse estribilho?
Só queria embalar meu filho
Que mora na escuridão do mar.”

Em 1974, o cenário econômico dos anos anteriores denunciava que as expectativas anteriores de melhoras no padrão de vida da população não se confirmaram. O salário mínimo estava bastante defasado, embora o PIB continuasse a crescer. O czar da economia Delfim Netto pedia calma: “Temos que esperar o bolo crescer para depois distribuir os pedaços”.

Chico Buarque, usando seu heterônimo Julinho da Adelaide, compôs “Milagre brasileiro”, na qual indagava pela sua parte:

“Cadê o meu?
Cadê o meu, ó meu?
Dizem que você se defendeu.
É o milagre brasileiro.”

O general Ernesto Geisel assumiu a presidência e prometeu distensão, embora entre idas e vindas. Permitiu eleições em 1974, para senadores, deputados e vereadores, com vitória clamorosa do MDB. A sociedade se escandalizava com a brutalidade da morte do jornalista Vladimir Herzog e com a morte do metalúrgico Manuel Fiel Filho.

A cantora Elis Regina cantou “O bêbado e o equilibrista”, de Aldir Blanc e João Bosco. Nessa canção, homenageavam-se o sociólogo Betinho, retornando do exílio; os choros das Marias – mãe de Betinho e de Henfil e também nome da esposa de Manuel – e Clarisses – viúva de Herzog:

“Chora a nossa pátria mãe gentil,
Choram Marias e Clarisses
No solo do Brasil.
Mas sei que uma dor assim pungente
Não pode ser inutilmente...”

Geisel extinguiu o AI-5, mas a Lei de Segurança Nacional ainda se apresentava como uma ameaça. Mas a crise econômica fazia a sociedade civil se organizar contra o regime e a favor da redemocratização.
Foi então que Taiguara, campeão dos compositores censurados, lançou “Outra cena”:

“O pó, o podre, o país,
A madre, o medo, a matriz,
Só não sofreu quem não viu.
Não entendeu quem não quis.”

Em 1978, na região do ABC Paulista, nascia um movimento que seria conhecido como “Novo sindicalismo”. O operário Luiz Inácio da Silva, o Lula, então presidente do Sindicato dos Metalúrgicos de São Bernardo liderou os trabalhadores que cruzaram os braços, desrespeitando a proibição de fazer greve. O Exército enviou aparato militar pesado, mas foram enfrentados por uma multidão de cerca de 120 mil pessoas. O perigo de guerra civil era iminente. Resultado: os militares mandaram os soldados retornarem, trazendo seus blindados e fuzis de volta para a caserna.

O movimento dos operários foi apoiado por artistas. Agnaldo Timóteo, ex-torneiro mecânico, Milton Nascimento, Elis Regina, Novelli e Chico Buarque compuseram “Lina de montagem”:

“Linha, linha de montagem
A cor, a coragem,
Cora coração.
Abecê, abecedário.”

Em agosto de 1979, o presidente João Baptista Figueiredo promulgou a Lei de Anistia: geral e irrestrita. A lei ainda desperta polêmica, pois pareceu uma absolvição de torturadores. Mas, na época, a felicidade dava o tom às comemorações por essa vitória.

Os compositores Paulo César Pinheiro e Maurício Tapajós deram à luz “Tô voltando”:

“Pode ir armando o coreto
E preparando aquele feijão preto.
Eu to voltando.
Põe meia dúzia de Brahma pra gelar.”

Apesar dos contratempos, Figueiredo, de fato, deu continuidade à abertura política iniciada por Geisel. Frases como “jurei fazer deste país uma democracia. Quem for contra a abertura política, eu prendo e arrebento”; ou “prefiro o cheiro dos cavalos ao cheiro do povo”, renderam-lhe uma “homenagem” de Chico Anysio, com a personagem Salomé. Era uma sátira, na qual a personagem criticava ministros, fingindo conversar com João Baptista, o nome do presidente.

Foi nesse período que o humorista e cantor Mussum gravou “Rio antigo”, de Chico Anysio e Nonato Buzar:

“Quero um bate-papo na esquina,
Eu quero o Rio antigo,
Com crianças na calçada,
Brincando sem perigo.”

O último ato terrorista da linha dura ocorreu no Riocentro, no Rio de Janeiro, numa festa para o Dia do Trabalhador. A festa contava com Chico Buarque, Gal Costa, Elba Ramalho, Gonzaguinha e Alceu Valença. Alceu cantava “Coração bobo” quando “de repente, vi uam coisa estranha, que nunca acontecera no meu show: a platéia toda, que estava ligada em mim, olhou para trás. Em seguida voltou-se para mim, como se nada houvesse acontecido”. A bomba que seria estourada no show explodiu no colo do sargento e do oficial do Exército que a carregavam. Alceu continuou sua apresentação:

“Coração-bobo, coração-bola,
Coração-balão, coração-São João.
A gente se ilude dizendo:
‘Já não há mais coração.’”  

Figueiredo também extinguiu a estrutura bipartidária. Daí surgiram PT, PDT, PDS, PMDB, PTB e PP.
Mas a eleição para presidente somente seria direta por alteração da Constituição. A votação foi desanimadora: 298 votos a favor, 65 contra. Não passou; eram necessários 22 votos a mais. A eleição indireta trouxe como adversários Tancredo Neves, do PMDB, e Paulo Maluf, apoiado pelo regime que se extinguia. Tancredo convidou então José Sarney para compor uma chapa forte, já que seu vice era líder do PDS governista.

Tancredo levou a campanha para as ruas, venceu... Mas caiu enfermo logo depois. Após 38 dias de apreensão por todo o país, vinha a fatídica notícia: faleceu sem que sequer tomasse posse no cargo.
Assim, após mais de 20 anos de ditadura, o primeiro presidente eleito do país tinha saído do âmago do regime.

O falecimento de Neves foi cantado por Ilton Nascimento em “Coração de estudante”, dele e de Wagner Tiso:

“Quero falar de uma coisa,
Adivinha onde ela anda?
Deve estar dentro do peito
Ou caminha pelo ar.”

Mas o passado parecia ser varrido, pouco a pouco. Chico cantou esse sentimento em “Vai passar”, composta com Francis Hime:

“Vai passar
Nessa avenida o samba popular.
Cada paralelepípedo da velha cidade
Essa noite vai se arrepiar...”


Rubem L. de F. Auto

Fonte: livro “A República cantada: do Choro ao Funk...”       


PRESIDENTE BOSSA NOVA E OUTRAS BOSSAS


Após seu fatídico suicídio, o vice presidente Café Filho sucedeu a Vargas na Presidência da República. Nas ruas, a proximidade da campanha eleitoral já levava o povo a cantar pelas ruas a canção de campanha do candidato preferido do povo, Juscelino Kubitschek, do PSD:

“Juscelino Kubitschek é o homem.
Vem de Minas, das bateias do sertão.
Juscelino, Juscelino é o homem
Que, além de patriota, é o nosso irmão.
 Brasil, vamos para as urnas.”

A eleição de 1955 foi ganha por JK, sendo João Goulart eleito vice, exibindo mais de 600 mil votos além dos de JK: a eleição de presidentes e vices ocorriam em fichas separadas.

Em 1958, iniciou-se um movimento musical no Rio de Janeiro que ganharia o mundo, de uma maneira inédita até então. Em Copacabana e em outras partes da zona sul do Rio de Janeiro, jovens boêmios, sorvendo copos de uísque e tragando cigarros, freqüentadores dos inferninhos e boates que ali se instalavam, puseram um fim às “dores de cotovelo” dos anos 1950. Deixavam para trás a era dominada por Dolores Duran, Antônio Maria e Maysa.

Aquele ano de 1958 foi o do lançamento do LP Canção do Amor Demais, de Elizath Cardoso. Esta obra clássica trazia entre suas faixas a canção “Chega de saudade”, de Tom Jobim e Vinicius de Moraes. No ano seguinte, João Gilberto, músico que desenvolveu um novo ritmo ao violão, regravaria o clássico inaugural:

“Chega de saudade!
A realidade é que sem ela
Não há paz,
Não há beleza,
É só tristeza e a melancolia...”

O frenesi trazido pelo novo estilo musical se somou a anos de euforia na economia: o Brasil crescia 10% a.a., a população consumia cada vez mais automóveis, televiasão, geladeira, rádio, toca-discos, ares-condicionados... O Rei do Futebol surgia nos gramados, Garrincha enlouquecia as torcidas, fomos Campeões do Mundo de futebol pela primeira vez... A trilha sonora era a música de Wagner Maugeri, Maugeri Sobrinho, Victor Dagô e Lauro Muller, “A Taça do Mundo é Nossa”:

“O brasileiro, lá no estrangeiro,
Mostrou o futebol como é que é,
Ganhou a Taça do Mundo
Sambando com a bola no pé.”

Esse foi o governo “bossa nova”, liderado pelo presidente bossa-nova, expressão criada por Juca Chaves, compositor e humorista, para sua canção “Presidente Bossa-nova”:

“Bossa-nova mesmo é ser presidente
Desta terra descoberta por Cabral.
Para tanto, basta ser tão simplesmente
Simpático, risonho, original.”

Em 1968, JK tornou públicos seus gostos musicais no disco “JK em Serenata”. Fã do cantor Paulo Marques, JK gosta de “Apesar de você”, de Chico Buarque, “Fascinação”, cantada por Carlos Galhardo. “Peixe vivo” era sua canção favorita:

“Como pode o peixe vivo
Viver fora da água fria?
Como pode o peixe vivo
Viver fora da água fria?”

Em meio a tantas realizações, uma se destacou sobremaneira: a construção de Brasília. Tendo como objetivo levar o desenvolvimento ao interior do país, a nova capital, inaugurada em 1960, traçava um abismo entre a população e a classe política. Até então, nas ruas do Rio, o povo encarava frequentemente seus eleitos. Bares, restaurantes, cinemas qualquer lugar poderia ser cenário para alguém cobrar seus direitos. Agora, todos deveriam se deslocar até o cerrado, incluindo os trabalhadores candangos, como bem cantava Jackson do Pandeiro, em “Homenagem À construção de Brasília”:

“Quem tiver de malas prontas
Pode ir que se dá bem.
Leve todos cacarecos,
Leve seu xodó também.”

Os anos de crescimento foram acompanhados pela inflação que, em sentido contrário, tirava o poder de compra do trabalhador. Em 1959, Miguel Gustavo compôs uma música que tocava nesse tema, “Dá um jeito nele, Nonô”, cantada pelo palhaço Carequinha, fazendo uso do apelido de infância do presidente:

“Dá um jeito nele, Nonô.
Meu dinheiro não tem mais valo,
Meu cruzeiro não vale nada,
Já não dá nem pra cocada.”

Embora em proporções diferentes, a classe média brasileira mergulhava na onda do consumismo à “american way of life”, o que vinha acompanhado pela ampliação do crédito. As críticas a esse jeito de viver não tardaram: as relações sociais se tornavam superficiais, interesseiras, só se pensava no seu conforto e na aquisição de bens materiais. O vazio existencial resultante levou a novos costumes e valores.

No campo da música, essa contracultura levou ao surgimento do rock`n roll, que rapidamente invadiu o Brasil. Aqui, o rock era um estilo musical curtido pela classe média, isto é, quem tinha condições financeiras de adquirir, discos importados, revistas estrangeiras, livros, ir a shows e adquirir uma guitarra.
O ritmo foi lançado no Brasil por uma garota chamada Celly Campello, cantando uma versão em português de “Stupid Cupid”, produzida por Fred Jorge e chamada Estúpido Cupido, lançada em 1959:

“Ó, ó! Cupido, vê se deixa em paz

Meu coração que já não pode amar.
Hei, hei, é o fim.
Ó, ó, Cupido, pra longe de mim.”

Alguns músicos se especializaram em fazer versões brasileiras de músicas estrangeiras. Um deles, que ficou conhecido como o Rei do Rock, era o cantor Sérgio Murilo.

As eleições de 1960 ocorreram em meio a uma profusão musical, que misturava rock, bossa nova, forró. O candidato eleito foi o professor Jânio Quadros, lançado candidato por um pequeno partido, mas que galgara o apoio da UDN. Concorria principalmente com o marechal Henrique Teixeira Lott, ministro da guerra de JK e que tinha o apoio do PTB e do PSD.

Jânio era a síntese do que veio a ser conhecido como o “anti-político”: fazia campanha falando em moralidade, em prender corruptos, em colocar funcionário público para trabalhar; vendia-se como moderno, eficiente. Seu símbolo de campanha era uma vassoura “para varrer a bandalheira”. Pois bem, agradou o eleitor. Agradou a elite também, pois era anticomunista e conservador.

Para sua vitória, Luiz Gonzaga e Lourival Passou compuseram “Alvorada da paz”:

“Jânio Quadros, tu és presidente.
Norte e sul, a nação unirás.
No Planalto te quer tanta gente,
Novo sol, alvorada da paz.”

Uma vez instalado no governo, transformou-se numa piada pronta: preocupava-se com amenidades, em vez do diálogo, adotou o hábito de distribuir bilhetinhos, proibiu lança-perfume no carnaval, vetou brigas de galo, proibiu corridas de cavalos em dias úteis... E proibiu o suo de biquínis. Talvez ele tivesse problemas com a Ana Maria:

“Era um biquíni de bolinha amarelinha tão pequenininho,
Mal cabia na Ana Maria.
Biquíni de bolinha amarelinha tão pequenininho
Que na palma da mão se escondia.”  

Em meio aos ataques, a UDN resolveu romper com o governo e Carlos Lacerda denunciou que Jânio pretendia dar um golpe e assumir poderes absolutos. Se estava certo ou não, o fato é que Quadros deixou um bilhete de renúncia, datado de 25 de agosto de 1961. Ninguém se manifestou.

Fato contínuo, renunciando o presidente, assume o seu vice. Mas aquele vice dava calafrios nas pessoas mais conservadoras. Naquele momento, João Goulart estava na China, estabelecendo contatos diplomáticos. Fez-se de tudo para que ele não retornasse ao país, a despeito do que dizia a Constituição.
O governador do Rio Grande do Sul, Leonel Brizola, do PTB, formou então a chamada “Cadeia da Legalidade”, segundo a qual usava uma emissora de rádio para convocar o povo a garantir a posse do presidente de direito. As transmissões começavam com o “Hino da Legalidade”, de Paulo César Pereio, Lara de Lemos e Demóstenes Gonzáles:

“Protesta contra o tirano,
Recusa a traição,
Que um povo só é bem grande
Se for livre sua nação.”

Jango somente foi autorizado a retornar ao Brasil após ter-se tomado uma solução pacificadora: instituiu-se o Parlamentarismo no Brasil, em setembro de 1961, e assim retirou-se muito poder do presidente. Nesse período, ganhou fama a canção “Que rei sou eu?”, de Herivelton Martins e Waldemar Ressurreição:

“Que rei sou eu
Sem reinado e sem coroa
Sem castelo e sem rainha?
Afinal que rei sou eu?”

Em janeiro de 1963, o povo votou pelo retorno do presidencialismo. Poderes retomados, agora Jango queria ver suas Reformas de Base aprovadas: investimentos em educação, reforma agrária, urbana e eleitoral.

A oposição respondeu às iniciativas do governo convocando a Marcha da Família com Deus pela Liberdade. Milhares saíram às ruas protestar contra o comunismo e pedir a destituição de Jango. A multidão cantava: ”Um, dois, três, Brizola no xadrez. E se tiver lugar, põe também o João Goulart.”

Em 31 de março de 1964, uma série de rebeliões em quartéis levou ao levantes da Forças Armadas contra o governo. Jango não conseguiu reagir, retornou a Brasília e deixou o país em direção ao exílio no Uruguai.
Os militares tomaram o poder, fecharam sindicatos, jornais tiveram a circulação proibida, universidades se esvaziaram; a rádio Mayrink Veiga, que ecoava as vozes do governo Jango no Rio de Janeiro, foi fechada.
Nessa época foi composta uma música que só poderia ir ao ar na década de 1980: “Simca Chambord”, de Marcelo Nova, Gustavo Mullen, Karl Hummel e Marcelo Cordeiro:

“O presidente João Goulart
Um dia falou na TV
Que a gente ia ter muita grana
Para fazer o que bem entender.”


Rubem L. de F. Auto

Fonte: livro “A República Cantada: do choro ao funk...”

sexta-feira, 6 de abril de 2018

EURICO OU EU FICO?


O compositor Ataulfo Alves não se preocupava tanto se a presidência seria ocupada por Vargas ou Dutra. Em “Isto é o que nós queremos”, dava seu recado:

“Nós queremos nossa liberdade,
Liberdade de pensar e falar.
Nós queremos escolas pros filhos
E mais casas pro povo morar.”

Mas em 1946, Dutra tomou a atitude que, talvez, seja a mais marcante de seu mandato: proibiu os jogos de azar no país. Nei Lopes e Zé Luiz do Império cantaram sobre eese fato em “Malandros maneiros”:

“No governo de marechal Dutra
Não teve truta nem meu pé dói
E na guerra que houve aos cassinos
Parou Constantino e fechou Niterói.”

Se foi a pedido de sua esposa, Carmela Dutra, cuja religiosidade lhe rendeu o apelido de Santinha, ou por forças políticas antipáticas a jogos de azar, difícil saber. O discurso oficial falava laconicamente apenas “em nome da moral e dos bons costumes”. O efeito colateral foi trágico: cerca de 40 mil desempregados da noite para o dia.

A simpatia por aquele tipo de diversão ficou explícito na canção “Cassino da Urca”, de Cartola:

“Rico panorama
Tem o Rio de Janiero.
(...)
A linda avenida Central,
Corcovado e Pão de açúcar,
E o cassino que falta
É o Cassino da Urca.”

O presidente Dutra, na seara econômica, lançou seu Plano Salte, prometendo investimentos em saúde, alimentação, transporte e energia. Mas esse plano serviu mesmo como mote para o samba-enredo para a escola de samba Mangueira conquistar o carnaval de 1950: “Plano Salte”, de Nelson Sargento e Alfredo Português:

“O povo deste Brasil querido
Se acha enriquecido
Com o Plano Salte,
Lembrando o doutor Oswaldo Cruz,
Que da ciência foi a luz,
Um valoroso baluarte.”

A Copa de 1950 estava em disputa e a seleção brasileira humilhava os espanhóis por 6 X 1 no recém-inaugurado Maracanã quando, inesperadamente, o grande compositor João de Barros, eternizado com o apelido de Braguinha, recebeu uma homenagem emocionante da torcida, que cantava em uníssono “Touradas em Madri”, seu sucesso para o carnaval de 1938. Braguinha, que estava na arquibancada, não conseguiu cantar de tão emocionado que se ficou.

Dutra era conhecido pelo seu silêncio sepulcral. Na verdade, ele tinha problemas de dicção, pois chiava nas letras “s” e “c”, pronunciando o “x” no lugar. Marino Pinto não deixou passar essa piada pronta e compôs “Voxê qué xabê”:

“Voxê qué xabê,
Voxê qué xabê.
Não pixija xabê.
Pra que voxê qué xabê?”

Se Dutra tinha problemas com a língua portuguesa, com a língua inglesa não se saía muito melhor. Ao receber o presidente americano Harry Truman no aeroporto, foi indagado pelo próprio: “How do you do, Dutra?”. O brasileiro apenas respondeu: “How tru you tru, Truman?”

Dutra chegou à presidência tendo na sua base de apoio a UDN de Carlos Lacerda, mas logo surgiram desentendimentos entre eles. Mas, antes de encarnar o líder direitista-extremista-raivoso, Lacerda era comunista (membro do Partidão) e compositor nas horas vagas. Ainda na década de 1930, ao lado do comunista Jorge Amado e de Dorival Caymmi, compôs a apaixonada “Beijos pela noite”:

“Um dia sentirás a mocidade
No teu corpo fatigado
Da saudade dos caminhos.
E então, sobre a lembrança dos meus beijos,
Nosso amor adolescente poderá recomeçar.”

A eleição seguinte veria um Vargas de energia renovada disputando a vaga no Catete. Braguinha e José Maria de Abreu vocalizaram os desejos dos que o queriam de volta:

“Ai, Gegê!
Que saudades que nós temos de você!
O feijão subiu de preço,
O café subiu também.”

Mas Getúlio sabia que teria de visitar os grotões para pedir votos. E assim o fez. No entanto, em Pernambuco, o velho sentiu-se indisposto e não pode continuar viagem. Para evitar contratempos, levaram-lhe um “miniestúdio”, com qual gravaram seu discurso e o reproduxiram em 160 vinis. Todos foram enviados a emissoras de rádio do interior do estado. E assim o povo pode ouvir o que o velho queria dizer.
O aparato era pertencente a José Rozenblit, fundador da Fábrica de Discos Rozenblit. Este empreendimento foi fundamental para a música brasileira, pois lá se registraram todas as obras de Capiba, Nelson Ferreira, Irmãos Valença, Levino Ferreira, Edgar Moraes dentre outros.

Luiz Gonzaga, o famoso Rei do Baião, já estava na estrada desde a década de 1940. Aproveitando o movimento de intensa urbanização, que se estendeu da década de 1940 até os anos 1970, que trouxe para o “sul maravilha” mais de 39 milhões de trabalhadores e seus familiares, que deixaram o campo em busca de uma “vida melhor”, que se materializaria num barraco pendente numa encosta de morro ou num casebre numa periferia distante, Gonzagão foi a trilha sonora desse enorme contingente. Ali, no forró, os nordestinos encontraram conterrâneos, tomavam pinga, comiam carne de sol. Os “arrasta-pé” comiam solto ao som do baião, do coco, do rojão, da quadrilha, do xaxado, do xote. O instrumento que sintetizava toda essa profusão cultural eram o “pé de bode”, a sanfona de oito baixos imortalizada por Gonzagão em “Januário”, composta em homenagem a seu pai.

Gonzagão assinou sua obra-prima ao lado do parceiro Humberto Teixeira e Zé Dantas: Asa Branca:

“Quando olhei a terra ardendo
Qual fogueira de São João,
Eu perguntei a Deus do céu: Ai,
Por que tamanha judiação?”

Evidentemente, com tanto sucesso, Luiz Gonzaga era requisitadíssimo durante as campanhas eleitorais. Fez jingles para Carlos Lacerda, Getúlio Vargas, Jânio Qaudros, Eurico Gaspar Dutra, além dos candidatos que concorriam em cada estado.

Mas o hit da eleição de 1950 foi “Retrato do velho”, de Haroldo Lobo e Marino Pinto:

“Bota o retrato do velho outra vez,
Bota no mesmo lugar.
O sorriso do velhinho
Faz a gente trabalhar.”

Getúlio levou, pela primeira vez era o presidente por meio de eleições diretas, mas teve de compor uma aliança política que de tão extensa alcançava até a UDN de Lacerda. Outro aliado polêmico era Ademar de Barros, do PSP, aquele que inventou o lema “Rouba, mas faz”. E São Paulo cantava assim essa macarronada:

“É PTB! É PSP!
Presidente Getúlio.
Ademar senador,
Lucas Garcez para governador.”

Mas o cenário que Getúlio herdou de Dutra era caótico. Agora o Brasil tinha 50 milhões de pessoas, estando 40% a residir em cidades. E a situação financeira dessa multidão não era das melhores. Ari Barroso e Benedito Lacerda cantaram isso em “Falta um zero no meu ordenado”:

“Trabalho como louco,
Mas ganho muito pouco,
Por isso eu vivo sempre atrapalhado,
Fazendo faxina,
Comendo no China.
Tá faltando um zero
No meu ordenado.”

Em seguida, começa a campanha “O petróleo é nosso”, que resultaria na criação da Petrobras. O samba “Falso patriota”, de David Raw e Victor Simon:

“Você diz que é patriota,
Sua bebida é de marca escocesa.
Não bebe nossa cachaça
E ergue a taça
Com a champanhe francesa.”

A crise financeira daquele período descambou na chamada greve dos 300 mil, em São Paulo. Getúlio respondeu nomeando João Goulart, do PTB, para o Ministério do Trabalho. Jango tido como comunista tanto pela UDN quanto por parte dos militares. Sua sugestão foi dobrar o salário mínimo. Não seria nada de mais, pois o mesmo não era reajustado há 10 anos.

Mas não foi isso o que aconteceu. Iniciou-se uma crise política intensa, Carlos Lacerda intensificava a cada dia mais seus ataques contra o Catete e, em 5 de agosto de 1954, na rua Tonelero, em Copacabana, um tiro direcionado a Lacerda, mas que terminou por atingir fatalmente o major da aeronáutica Rubens Vaz, pôs fim às condições políticas do governo Vargas. Até seu vice conspirava com Lacerda, às claras.
Na madrugada de 23 para 24 de agosto, um tiro de colt 32 contra o peito, dado por si mesmo, pôs fim à vida do velho Gegê.

A trilha sonora de despedida de Vargas ficou a cargo de Moreira da Silva, agora usando sua gesticulação excessiva para cantar “A carta”, de Silas de Oliveira e Marcelino Ramos:

“Mais uma vez
As forças e interesses contra oi povo
Coordenaram-se novamente
E se desencadeiam sobre mim.
Não me acusam,
Insultam-me de novo.
Vejo de perto aproximar meu fim.”

Já a canção “Vinte e quatro de agosto”, de Teixeirinha, procurava eternizar o dia trágico:

“Vinte e quatro de agosto a terra estremeceu.
Os rádios anunciavam o fato que aconteceu.
As nuvens cobriam o céu, o povo em geral sofreu.
O Brasil cobriu de luto, Getúlio Vargas morreu.”


Rubem L. de F. Auto

Fonte: livro “A República Cantada: do choro ao funk...”