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quinta-feira, 4 de outubro de 2018

UM RIO DE MODERNIDADE: DO LAMPIÃO ÀS LEIS DE TRÂNSITO



Em meados do século XIX, a cidade do Rio de Janeiro contava cerca de 250 mil almas, metade aproximadamente conformada por escravos. A área habitada desenhava um arco indo do Campo de Santana ao Largo do Machado, a oeste, tendo o mar como limitador a leste. Era ali que se desenrolava a vida urbana.

A cidade se encontrava no limiar entre uma cidade dos tempos medievais e uma outra, dos tempos modernos: falta de esgoto, calçamento precário, lama e poeira, mendigos, “capoeiras”, epidemias... tudo isso convivendo com incipientes serviços de entrega de água em domicílio, o que se dava por meio de carroças com pipas, serviços de entrega de correspondências, operado pelo Correio.

Em 1847, uma novidade surpreendeu os cariocas: a Câmara Municipal editou uma postura (lei) que estabelecia mão e contramão nas vias da capital do Império. As melhorias das antes estreitas e imundas vias públicas levaram à necessidade de se estabelecer uma ordem no tráfego de veículos puxados por animais, liteiras, seges, caleches, cabs, tílburis, vitórias, berlindas, ônibus e gôndolas que disputavam espaço no trânsito em ebulição – ah! Com as lanternas acesas à noite, exceto se fosse noite de lua cheia.

O ano de 1850 viu um dos eventos de maior repercussão na história nacional: a abolição de tráfico de escravos, embora ainda tivéssemos de conviver com o instituto da escravidão por mais algumas décadas.

Este fato levaria ao incremento de investimentos de capitais em diversas áreas da economia, afinal o volume de capitais investidos no tráfico de escravos era imenso. Sem falar que o Brasil dera um passo importante para ser admitido no clube das nações civilizadas.

Embora a chegada da família real portuguesa tivesse dado o impulso inicial à modernização da colônia americana, a primeira metade daquele século ainda vivia sob a gravíssima crise econômica provocada pelo declínio da atividade de mineração. Contudo, já a partir de 1850 o progresso vertiginoso observado nas lavouras de café deixava o pior para trás. A produção crescia, as exportações de café galopavam, em breve o Brasil conquistaria a dianteira do mercado internacional do grão. Capitalistas enriquecidos disponibilizavam capitais para empreendimentos ligados À construção de ferrovias, telégrafos, iluminação pública etc.

A cidade do Rio de Janeiro viu suas ruas iluminadas pelos postes a gás já em 1854. O empreendimento foi levado a cabo por Irineu Evangelista de Souza, o incansável Barão de Mauá. Seu termo de compromisso quanto à qualidade do que empreendera previa uma iluminação pública “superior à de Londres e nunca inferior à de Manchester”. Mas a prática já dava sinais de desentendimentos que acompanhariam as obras públicas brasileiras: a polícia acha a iluminação dispensável nas noites de luar; o Ministro da Justiça discorda e obriga o funcionamento mesmo nas noites de “lua oficial”; a imprensa crê que manter os lampiões acesos todas as noites “apagará” a bela poesia do luar e afundará as já combalidas finanças do Império... O carioca não perdeu o humor: o gás (lampião a gás) virou lamparina.

Como consequência da interrupção do tráfico de escravos e, por extensão, da entrada de escravos novos no país, a proporção de escravos em relação à população total do país entrou em declínio: em 1850 era de 31%, em 1872 se reduziu a 15% e em 1887 representava meros 5%. Simultaneamente, a população livre saiu da insignificância para se consolidar como uma classe social importante. Se a sociedade brasileira era dividida até então dividida em duas classes sociais sem qualquer interseção, senhores e escravos, surgia agora uma terceira: os homens livres, a mais urbana das três.

As divisas advindas das exportações de café, somadas aos homens livres produzindo riquezas, o comércio em franca expansão, tudo isso levou a obras de transporte urbano e à abertura de ruas e avenidas, novos bairros explodiam e levavam os limites urbanos a regiões a cada dia mais distantes. A primeira linha de bonde é inaugurada; artistas e intelectuais se tornavam a cada dia mais numerosos.

Esses artistas e intelectuais saiam, em geral, da nova classe dos homens livres. Além de poderem pretender à ascensão social por meio da arte e da literatura, contavam com o prestígio advindo do fato de não exercerem atividades manuais – atividades localizadas no fundo do poço da reputação num país escravagista e admirador do ócio.

Antes desses proto-artistas tupiniquins, a cultura brasileira era marcantemente europeia. Embora os negros escravizados trouxessem e até mesmo desenvolvessem uma cultura popular própria, a condição de escravos desvalorizava e desestimulava seu consumo pelo restante da sociedade. Até 1808 não fazia sentido falar em cultura nacional – Aleijadinho, Domingos Caldas Barbosa eram exceções que confirmavam a regra. Mesmo as realizações artísticas brasileiras eram carregadas de elementos alienígenas, notadamente franceses.  Nas palavras de Nelson Werneck Sodré: “Trata-se, no conjunto, de arte estrangeira, elaborada no Brasil por coincidência ou acidente”. Creia: os brasileiros eram os assinantes mais numerosos da publicação francesa Revue des Deux Mondes, depois dos franceses.

Mas então surgiu o barco a vapor. Esse meio de transporte revolucionário encurtou a travessia do Atlântico, aproximando a Europa da América. Saem os degradantes navios negreiros e entram em cena os paquetes franceses. As remessas de escravos africanos são substituídas por passageiras francesas e polonesas, a cada dia mais frequentes e numerosas, importadas por donos de pensão de dos novos cafés à parisiense que pululavam as novas ruas cariocas. Mas nem todos comemoraram os novos tempos. Como disse um político conservador, por volta de 1859, citado por Caio Prado Junior: “Antes bons negros da costa da África do que todas as teteias da rua do Ouvidor”.

Os novos estabelecimentos de diversão, inspirados no que havia de mais moderno na França, trouxeram o espetáculo de variedades. Os locais eram de propriedade de franceses que se estabeleceram na rua da Vala, atual rua Uruguaiana. Ali nasceu aquela que se tornaria a casa mais famosa dentre os boêmios da cidade: Alcazar Lírico. Sua programação girava em torno de canto e dança, surgindo daí o apelido dado pelos cariocas ao gênero daquele tipo de espetáculo: café-dançante. Mais tarde surgiriam os “chopes-dançantes”.

Pouco a pouco o Rio de Janeiro faria jus ao apelido que receberia: barulhópolis. Ao barulho das festividades religiosas – com os gogos de artifício importados da China -, das bandas desfilando pelas ruas, dos sinos das igrejas, dos escravos de ganho anunciando seus produtos, somavam-se agora os sons emitidos pelas novíssimas casas noturnas.

Outro efeito que surgia pouco a pouco era o afrouxamento dos costumes e regras morais. Uma das responsáveis por isso atendia por Aimée, atriz francesa estrela-maior do Alcazar Lírico, e tormento maior das mulheres casadas da cidade.

Ao par das atrações citadas, havia o teatro lírico, bailes, saraus para os senhores mais finos; cavalhadas, touradas e regatas para os amis populares; podiam-se assistir também a apresentações de animais exóticos, como elefantes e baleias. As famílias se reuniam para disputadas partidas de voltarete, dominó, gamão, baralho. Mas o povo gostava mesmo era de cantar e dançar.

Os cariocas se deliciavam ao som de rabecas e pianos, especialmente. Flautas e atabaques eram acompanhados por descontraídas palmas e por assobios. Festas religiosas e coretos davam uma oportunidade a mais para as pessoas se divertirem ao som de muita música.

Se os salões mais disputados eram dedicados à valsa, as reuniões familiares eram animadas pela polca. Já a gente escrava e mais pobre se divertia com rodas de dança ao ritmo do lundu, precursor do samba.

E assim se vivam os dias da capital do Império brasileiro...


Rubem L. de F. Auto

Fonte: livro “Chiquinha Gonzaga: uma história de vida”

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