O período que se estende do final da Guerra do Paraguai, em
1870, até o fim do Império, 1889, foi marcado por mudanças muito significativas
na vida urbana da cidade do Rio de Janeiro. Embora a economia do país houvesse
melhorado bastante desde o advento do café como o principal produto de
exportação do país, a Guerra provocou um incremento de despesas insuportável
para os cofres públicos, ao passo que o preço do café no mercado internacional
despencava como não se havia visto ainda. A dívida externa que o país contraiu de
bancos ingleses explodiu: armas e capitais vinham da Ilha do Norte, enquanto
que os recursos necessários para quitá-los escasseavam. Não se olvide também a
mudança estrutural por que passava o Exército, a cada dia mais tomado por
ideias abolicionistas e republicanas, o que se devia ao aumento do contingente total
e dos membros vindos da classe média e dos escravos.
A situação econômica preocupante chega ao ponto de parte da
imprensa chamar o país de “orçamentiroso”. O grande aumento dos lucros advindos
das exportações de café converteu o Brasil num grande importador de produtos
industrializados vindos das nações mais desenvolvidas. A consequência disso foi
o enfraquecimento do processo de industrialização nacional, tornando as
indústrias brasileiras não competitivas. Com a crise, o país perdia divisas
rapidamente.
Tudo isso corria pari passu com as seguidas leis que punham,
lentamente, um fim na pérfida instituição da escravidão. Após a lei dos
Sexagenários, de 1885, movimentos de rua puseram um ponto final naquela
situação vergonhosa.
As agitações políticas, sociais e culturais levaram ao
surgimento associações, grêmios, clubes, políticos, literários, recreativos,
abolicionistas, de choro, carnavalescos etc. Essa aproximação dos membros da
sociedade leva à substituição de algumas das funções antes a cargo da família pelas
sociedades civis, o que enfraquece o poder do patriarcado.
As condições de higiene, tradicionalmente sofríveis na
imunda capital, passavam por transformações revitalizadoras. Foi por essa época
que Alexandre Gary firmou contrato com o município para realização da limpeza
urbana; outro empresário, Joseph Fogliani, recebeu a concessão de banhos
públicos em estabelecimentos hidroterápicos. Pela primeira vez as pessoas
tomariam banho de ducha – ou “banho de chuva”. Parecia que a contínua e quase
ininterrupta epidemia de febre amarela, o grande inimigo público da cidade ao
longo de toda a segunda parte do século XIX, estava com os dias contados.
Documentado pela primeira vez no verão de 1849, os surtos de
febre amarela eram constantes. Muitos criam ser aquela uma punição divina pela
decisão de se excluir a imagem de São Benedito da Procissão das Cinzas naquele
ano.
Mas aquela epidemia incontida trouxe graves consequências:
impediu um movimento imigratório mais intenso, manchou a imagem do país junto
às nações mais desenvolvidas e chegou ao ponto de impedir a atracagem de navios
saídos do Rio de Janeiro em portos de todo o mundo.
Um dos símbolos da entrada do país na modernidade foi a
revogação do “toque de Aragão” na capital. Mecanismo utilizado na Europa
medieval, devia seu nome ao seu fundador, o intendente de polícia Francisco
Alberto Teixeira de Aragão, no primeiro Império. Consistia na proibição de
tráfego de pessoas após as 21h no inverno e 22h no verão e até a alvorada
seguinte. O sinal era dado pelo sino da igreja de São Francisco de Paula. A não
observação da norma tornava o cidadão sujeito a revista pela polícia.
Mas havia os insujeitos de sempre: os capoeiras (os “vagabundos”
da época), as mulheres da vida. O fim da ordem levou ao surgimento dos boêmios,
tipo social que se tornaria símbolo da cidade.
A vida noturna, pelo aspecto musical, levou ao surgimento dos
seresteiros; nasceu o choro.
A vida literária também teve impulso, mas muito limitado
pelo fato de a sociedade brasileira ser ainda notoriamente conformada por
analfabetos. Poetas e escritores ficavam um tanto restritos a servirem de
ornamento social: exibiam seu vocabulário sofisticado e rebuscado em reuniões
com seus pares, especialmente em confeitarias – não à toa conhecidas como “colmeias
dos ociosos”.
Outra maneira de os intelectuais passarem seu tempo era
defendendo seu “time” em rodas de boêmios. Eram as famosas “panelinhas”, que
reuniam os simpatizantes daqui contra os antipáticos dacolá (de outra “panelinha”).
As disputas se davam em torno de polêmicas, guerras de metáforas, proteção de
membros contra ataques literários do “inimigo” e até perseguições.
As primeiras confeitarias brasileiras remontam à chegada da
Corte, em 1808. Mas somente após 1834, quando o sorvete enfim aqui aportou, não
era um local de reuniões familiares. Mas as mulheres estrangeiras, mais
acostumadas àquela novidade, abriram caminho para que as brasileiras o
fizessem.
Entretanto, somente até as 17h. Após esse horário-limite, as únicas
mulheres ali avistáveis eram as concorridas “cocotte”: prostitutas, elegantes,
geralmente francesas, atuantes nos cafés-cantantes e moradoras das pensões de
artistas.
Uma das confeitarias mais afamadas da cidade era a
Confeitaria Castellões, localizada na rua do Ouvidor, 19. Era bastante
frequentada por atores e músicos – o mais famoso era Carlos Gomes, amigo
pessoal do proprietário. Era também um dos pontos de venda de ingressos de
teatro.
Seguindo pela rua do Ouvidor, no número 128 havia a
Confeitaria Paschoal. Quem batia ponto ali era o poeta Olavo Bilac, além do
jornalista José do Patrocínio. Aliás, após um desentendimento entre o poeta e o
proprietário do estabelecimento, toda a “panelinha” do literato se transferiu
para a concorrente Confeitaria Colombo.
Esta última, após se tronar ponto de encontro dos membros da
Academia Brasileira de Letras, recebeu o apelido de Sucursal da Academia.
Uma novidade que foi adotada com ardor pelos cariocas foram
os espetáculos de variedades dos cafés-dançantes – alguns viraram locais de
quase veneração. Inaugurados pelo Alcazar Lírico, os homens e as cocotas, que
formavam seu público fiel, animavam-se diante da possibilidade de um eventual “rendez
vous”. Os locais eram animados também por canções de letras maliciosas, de
duplo sentido.
A mobilidade urbana sofreu um salto tecnológico com a
inauguração das primeiras linhas de bondes, a partir de outubro de 1868. A
companhia pioneira chamava-se Ferro-Carril do Jardim Botânico. O nome bonde foi
dado em razão do momento difícil por que passava a economia brasileira: o
Ministro da Fazenda Visconde de Itaboraí criou um programa de financiamento
público mediante a colocação de títulos públicos (bonds, em inglês), também
chamados de vales – os credores do governo eram portadores desses bonds. Como a
moeda continuava sendo coisa rara naquela época, a companhia Ferro-Carril seguiu
o mesmo procedimento do governo e passou a emitir bilhetes de mil-réis que
tanto poderiam ser usados no pagamento das passagens como eram meios
circulantes, aceitos pelo comércio em geral como se moeda fossem. Daí para o
veículo puxado por burros sobre trilhos ser chamado de bonde foi um pulo.
O ponto final da primeira linha de bondes ficava na esquina
das ruas do Ouvidor e Gonçalves Dias. Lá, agrupavam-se os “voyer” da época: os “bolina”
e os “espia”, atentos para não perder nenhuma perna descuidada ou um tornozelo
de fora, quando as moças saltavam dos carros.
A chiquérrima rua do Ouvidor tinha muitos nomes: rua-salão,
clube ao ar livre, França Antártica, rainha da moda e da elegância, fórum de
debates, via dolorosa dos maridos pobres, pátria dos franceses de todos os
países e dso boêmios de todas as idades, beco dos faladores e muito mais.
Toda a elegância da rua e sua exclusividade que tanto
encantava as pessoas mais abastadas se devia à proibição de que por ela
transitassem pessoas descalças: portanto os escravos eram proibidos de andar ao
longo dela. Era uma rua estreita, onde se acotovelavam pessoas vestidas
elegantemente, em busca das muitas lojas – a grande maioria pertencente a
franceses - de roupas, cabeleireiros, confeitarias etc. O jornal Gazeta de
Notícias tinha sua sede na Ouvidor e sua coluna social abordava os aspectos
intrigantes da famosa boulevard.
Outro evento que deixava a sociedade carioca em polvorosa
era as companhias de teatro estrangeiras quando aqui aportavam. Desde o início
das viagens transoceânicas por navios a vapor a chegada dessas “troupes” se
tornou frequente. Eram companhias francesas, italianas, espanholas e, a
maioria, portuguesas que causavam até o fechamento do comércio mais cedo.
Os rapazes mais afoitos exigiam até intervenção policial
para desgrudarem das jovens atrizes. Os petiscos mais consumidos eram os
biscoitos Sinhá com refresco de groselha com polpa de tamarindo. Os menos
abastados se juntavam na “torrinha”, a galeria mais alta dos teatros e mais
barulhenta.
O Teatro mais exclusivo era o Teatro Lírico – muito frequentado
por D. Pedro II. Embora fosse o teatro mais aconselhável às damas da sociedade,
era onde se reuniam mais numerosamente as cocotas.
Rubem L. de F. Auto
Fonte: livro “Chiquinha Gonzaga: uma história de vida”
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