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quarta-feira, 10 de outubro de 2018

AS RAÍZES ÉTNICAS DA MÚSICA POPULAR BRASILEIRA



As origens da música brasileira são mapeadas, em geral, desde a década de 1870. E o elemento que melhor a identificava desde o nascedouro era a influência cultural negra.

Isso só foi possível por causa da força da cultura negra, cujo símbolo mais resistente era a religião, responsável por manter vivos a dança e os cantos de origem africana.

Foi essa mesma origem religiosa comum que manteve a coesão étnica, inesperada e temida pelo poder estatal, entre os africanos aqui escravizados - o que ajudou a manter uma unidade cultural. Essa unidade cultural poderia descambar em rebelião e, assim, pôr em xeque a construção social daquela nação de base escravista.

Passou então o Estado, ao lado de sua sócia, a Igreja, a profanizar toda cultura de origem negra, com o fim de enfraquecê-la e torna-la inócua no que se refere a uma eventual mobilização de elementos da sociedade.

A solução apontada passava pela assimilação do elemento negro pela religião branca. Daí surgiu um calendário de festividades católicas que pretendia oferecer um espaço “sagrado”, segundo a Igreja, para a manifestação cultural negra, enquanto seus espaços de fato sagrados, os terreiros, eram perseguidos e proibidos pelo Estado.

Este sincretismo, pretendido e planejado pelo elemento “branco”, revelou ao mesmo tempo uma prática religiosa que poderia ser acusada de pagã por católicos europeus e uma criação musical única, sugerindo assim que os negros abraçaram o sincretismo com o fim único de manter viva sua orgulhosa bagagem cultural.

]Um elemento cultural que, historicamente, causava alvoroço entre os estratos brancos das inúmeras sociedades em que inseridas eram as danças, geralmente muito sensuais. Como é usual, a inserção cultural das danças ocorreu por meio da aculturação, da retirada de seus elementos constitutivos e sua substituição por um outro correspondente, típico da cultura local. O fandango ibérico, tido por muitos como a matriz a partir da qual surgiram todas as outras danças populares do Brasil, suscitou o seguinte comentário do sedutor Casanova, ao assisti-la na Espanha, em 1767: “uma manifestação de amor do princípio ao fim, desde o olhar de desejo até o êxtase de gozo.”

Embora de extração popular, as danças de origem africana atraiam também pessoas brancas das classes mais privilegiadas, embora a sua adesão mais decidida só tenha surgido após a entrada em cena da polca – branca, por ser polonesa; sensual, como uma dança africana.

Contudo, no Brasil, as acusações acerca dos excessos voluptuosos dos corpos quando os negros se lançavam à dança fizeram nascer a suspeita de que aquela maneira de dançar era também uma expressão de rebeldia: se seu corpo era propriedade de outro, liberá-lo por meio de movimentos exagerados era uma forma de liberá-lo. O mesmo vale para a tão propalada indisciplina do brasileiro, provável herança dos mal fadados séculos da escravidão.

Era um equilíbrio sutil: permitir o lazer dos escravos, com o fito de tornar o trabalho escravo mais suportável; mas condenavam o que consideravam um excesso de despudor.

A modernidade se encarregou de tornar aquele tipo de sociedade insustentável. Os negros alforriados que retornavam da Guerra do Paraguai engrossavam o corpo de cidadãos livres em busca de oportunidades de trabalho assalariado; o fim do tráfico negreiro tornavam a mão de obra escrava escassa; a urbanização criava oportunidades profissionais para os estamentos inferiores da sociedade. E tudo isso gerava oportunidades de ascensão social a negros e mestiços. Com o incremento da renda, surgia a necessidade de se ofertarem atividades de lazer para toda essa gente.

Fenômeno que corria em paralelo a isso tudo, a crise econômica da segunda metade do século XIX gerou a multiplicação de um tipo bem particular de escravo: o escravo de ganho. Senhores de escravo empobrecidos, mas apegados à possibilidade de possuírem um ser humano para chamar de seu, empregavam sua força de trabalho para trabalhos fora do lar. Se o escravo fosse do sexo masculino, atuava como marceneiro, ourives etc. Se fosse uma mulher, empregavam-na como vendedora de quitutes ambulante.

Estes escravos tinham o direito de guardarem parte dos ganhos para si. O resultado disso era que muitos conseguiam os recursos para comprarem sua liberdade: a carta de alforria. Esses ex-escravos logo encaravam o problema da falta de moradia. Com isso, muitos foram habitar nos pés do morro de Santo Antônio, no centro do Rio de Janeiro: era uma espécie de pro-favela, embora essa nomenclatura só fosse nascer um pouco mais tarde.

Foi justamente o escravo de ganho quem realizou a conexão entre a cultura branca, à qual acostumara-se nos tempos de servidão na casa do seu senhor; mas também tinha plena afinidade com a cultura negra, sua cultura e cultura dos seus.

O período final de vigência da escravidão viu o contingente de homens livres inflar bastante em função das muitas fugas de escravos e de concessões desenfreadas de cartas de alforria. Com isso, inúmeros negros livres buscaram nas cidades novas colocações sociais.

Tudo isso posto, nada no Brasil floresceu mais decididamente do que a música de raízes negras. Primeiramente, a execução musical ficava a cargo de tocadores - o pessoal do sereno - e das bandas. As bandas, aliás, eram presença aguardada nas festas religiosas, nas datas nacionais e nos coretos das praças públicas – estas últimas eram festividades que ocorriam invariavelmente todos os domingos.

E de nada seria o mundo da música feita no Brasil sem os negros: era ele quem mais se familiarizara com a música naquela sociedade. Afinal, o canto o acompanhara nos seus ritos religiosos, na lida do campo, nas ruas, anunciando seus produtos e serviços, assim como nas liturgias dominicais, no caso dos cristãos convertidos.

Foi esse ambiente que viu a transformação do Brasil e uma sonolenta colônia agrícola num importante mercado consumidor dos produtos industrializados europeus. Esse fenômeno foi responsável por uma completa transformação da música brasileira, dando origem a diversos estilos, produto de fusões da nossa música com as novidades vindas de fora.

Primeiro, veio a polca; depois, instrumentos musicais como o piano, instrumentos de cordas e de sopro; mais um pouco, flauta e violão caem no gosto popular. Nascem editoras e indústrias tipográficas se multiplicam. Escolas de música são fundadas.

Logo desembarcam no Brasil estilos de música popular europeias: valsa, tango, schottisch etc. E o público consumidor dessa novidade toda se firmava a cada dia: a classe dos homens livres se torna classe média com a agregação de mestiços, pequenos comerciantes, funcionários estatais, estrangeiros que para cá migravam etc.            

Paralelamente, claro, desenvolvia-se o mercado de trabalho para músicos: cafés-dançantes, confeitarias, praças e coretos, bailes, saraus, músicos de lojas de músicas... Já é possível viver como músico profissional, e assim o músico mestiço ganhou destaque, afinal conhecia aquilo que mais agradava as massas.

Embora os aristocratas, tão embevecidos pela alta cultura europeia e seu idioma oficial, o francês, do qual faziam uso rotineiramente, não se sentissem particularmente atraídos pela cultura popular de raízes negras e escravas, esta ganhou toda a sociedade como adepta e manteve vigente aquela ordem social capenga. Foi a música popular, num primeiro momento com destaque para a modinha, quem garantiu algum tipo de coesão entre classes sociais que se diferenciavam até pelo que ouviam.


Rubem L. de F. Auto

Fonte: livro “Chiquinha Gonzaga: uma história de vida”

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