As origens da música brasileira são mapeadas, em geral, desde
a década de 1870. E o elemento que melhor a identificava desde o nascedouro era
a influência cultural negra.
Isso só foi possível por causa da força da cultura negra,
cujo símbolo mais resistente era a religião, responsável por manter vivos a
dança e os cantos de origem africana.
Foi essa mesma origem religiosa comum que manteve a coesão
étnica, inesperada e temida pelo poder estatal, entre os africanos aqui
escravizados - o que ajudou a manter uma unidade cultural. Essa unidade
cultural poderia descambar em rebelião e, assim, pôr em xeque a construção social
daquela nação de base escravista.
Passou então o Estado, ao lado de sua sócia, a Igreja, a
profanizar toda cultura de origem negra, com o fim de enfraquecê-la e torna-la
inócua no que se refere a uma eventual mobilização de elementos da sociedade.
A solução apontada passava pela assimilação do elemento
negro pela religião branca. Daí surgiu um calendário de festividades católicas
que pretendia oferecer um espaço “sagrado”, segundo a Igreja, para a
manifestação cultural negra, enquanto seus espaços de fato sagrados, os
terreiros, eram perseguidos e proibidos pelo Estado.
Este sincretismo, pretendido e planejado pelo elemento “branco”,
revelou ao mesmo tempo uma prática religiosa que poderia ser acusada de pagã
por católicos europeus e uma criação musical única, sugerindo assim que os
negros abraçaram o sincretismo com o fim único de manter viva sua orgulhosa bagagem
cultural.
]Um elemento cultural que, historicamente, causava alvoroço
entre os estratos brancos das inúmeras sociedades em que inseridas eram as
danças, geralmente muito sensuais. Como é usual, a inserção cultural das danças
ocorreu por meio da aculturação, da retirada de seus elementos constitutivos e sua
substituição por um outro correspondente, típico da cultura local. O fandango
ibérico, tido por muitos como a matriz a partir da qual surgiram todas as outras
danças populares do Brasil, suscitou o seguinte comentário do sedutor Casanova,
ao assisti-la na Espanha, em 1767: “uma manifestação de amor do princípio ao
fim, desde o olhar de desejo até o êxtase de gozo.”
Embora de extração popular, as danças de origem africana atraiam
também pessoas brancas das classes mais privilegiadas, embora a sua adesão mais
decidida só tenha surgido após a entrada em cena da polca – branca, por ser
polonesa; sensual, como uma dança africana.
Contudo, no Brasil, as acusações acerca dos excessos
voluptuosos dos corpos quando os negros se lançavam à dança fizeram nascer a
suspeita de que aquela maneira de dançar era também uma expressão de rebeldia:
se seu corpo era propriedade de outro, liberá-lo por meio de movimentos
exagerados era uma forma de liberá-lo. O mesmo vale para a tão propalada
indisciplina do brasileiro, provável herança dos mal fadados séculos da
escravidão.
Era um equilíbrio sutil: permitir o lazer dos escravos, com
o fito de tornar o trabalho escravo mais suportável; mas condenavam o que
consideravam um excesso de despudor.
A modernidade se encarregou de tornar aquele tipo de
sociedade insustentável. Os negros alforriados que retornavam da Guerra do
Paraguai engrossavam o corpo de cidadãos livres em busca de oportunidades de
trabalho assalariado; o fim do tráfico negreiro tornavam a mão de obra escrava
escassa; a urbanização criava oportunidades profissionais para os estamentos inferiores
da sociedade. E tudo isso gerava oportunidades de ascensão social a negros e
mestiços. Com o incremento da renda, surgia a necessidade de se ofertarem
atividades de lazer para toda essa gente.
Fenômeno que corria em paralelo a isso tudo, a crise
econômica da segunda metade do século XIX gerou a multiplicação de um tipo bem
particular de escravo: o escravo de ganho. Senhores de escravo empobrecidos,
mas apegados à possibilidade de possuírem um ser humano para chamar de seu,
empregavam sua força de trabalho para trabalhos fora do lar. Se o escravo fosse
do sexo masculino, atuava como marceneiro, ourives etc. Se fosse uma mulher,
empregavam-na como vendedora de quitutes ambulante.
Estes escravos tinham o direito de guardarem parte dos
ganhos para si. O resultado disso era que muitos conseguiam os recursos para
comprarem sua liberdade: a carta de alforria. Esses ex-escravos logo encaravam
o problema da falta de moradia. Com isso, muitos foram habitar nos pés do morro
de Santo Antônio, no centro do Rio de Janeiro: era uma espécie de pro-favela,
embora essa nomenclatura só fosse nascer um pouco mais tarde.
Foi justamente o escravo de ganho quem realizou a conexão
entre a cultura branca, à qual acostumara-se nos tempos de servidão na casa do
seu senhor; mas também tinha plena afinidade com a cultura negra, sua cultura e
cultura dos seus.
O período final de vigência da escravidão viu o contingente de
homens livres inflar bastante em função das muitas fugas de escravos e de concessões
desenfreadas de cartas de alforria. Com isso, inúmeros negros livres buscaram
nas cidades novas colocações sociais.
Tudo isso posto, nada no Brasil floresceu mais decididamente
do que a música de raízes negras. Primeiramente, a execução musical ficava a
cargo de tocadores - o pessoal do sereno - e das bandas. As bandas, aliás, eram
presença aguardada nas festas religiosas, nas datas nacionais e nos coretos das
praças públicas – estas últimas eram festividades que ocorriam invariavelmente todos
os domingos.
E de nada seria o mundo da música feita no Brasil sem os negros: era
ele quem mais se familiarizara com a música naquela sociedade. Afinal, o canto
o acompanhara nos seus ritos religiosos, na lida do campo, nas ruas, anunciando
seus produtos e serviços, assim como nas liturgias dominicais, no caso dos
cristãos convertidos.
Foi esse ambiente que viu a transformação do Brasil e uma
sonolenta colônia agrícola num importante mercado consumidor dos produtos
industrializados europeus. Esse fenômeno foi responsável por uma completa
transformação da música brasileira, dando origem a diversos estilos, produto de
fusões da nossa música com as novidades vindas de fora.
Primeiro, veio a polca; depois, instrumentos musicais como o
piano, instrumentos de cordas e de sopro; mais um pouco, flauta e violão caem
no gosto popular. Nascem editoras e indústrias tipográficas se multiplicam. Escolas
de música são fundadas.
Logo desembarcam no Brasil estilos de música popular
europeias: valsa, tango, schottisch etc. E o público consumidor dessa novidade
toda se firmava a cada dia: a classe dos homens livres se torna classe média
com a agregação de mestiços, pequenos comerciantes, funcionários estatais,
estrangeiros que para cá migravam etc.
Paralelamente, claro, desenvolvia-se o mercado de trabalho
para músicos: cafés-dançantes, confeitarias, praças e coretos, bailes, saraus,
músicos de lojas de músicas... Já é possível viver como músico profissional, e assim
o músico mestiço ganhou destaque, afinal conhecia aquilo que mais agradava as
massas.
Embora os aristocratas, tão embevecidos pela alta cultura europeia
e seu idioma oficial, o francês, do qual faziam uso rotineiramente, não se
sentissem particularmente atraídos pela cultura popular de raízes negras e
escravas, esta ganhou toda a sociedade como adepta e manteve vigente aquela ordem
social capenga. Foi a música popular, num primeiro momento com destaque para a
modinha, quem garantiu algum tipo de coesão entre classes sociais que se
diferenciavam até pelo que ouviam.
Rubem L. de F. Auto
Fonte: livro “Chiquinha Gonzaga: uma história de vida”
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