Resolver o
problema do trânsito no Brasil começa por se afastar da ideia de que mudanças
legislativas têm tal poder. Ter um código de trânsito mais adiantado do que o
sueco, o alemão ou o britânico; instalar equipamentos de controle de tráfego
americanos; ter ruas tão belas e modernas quanto as bulevares parisienses, tudo
isso de nada vale se nossos motoristas não forem respeitosos com as leis e
regras de trânsito quanto suecos, alemães, ingleses, americanos e franceses.
As mudanças
nas leis somente causam algum efeito se a sociedade que as receber tiver
consciência de sua necessidade e preparada para suas consequências. Mudanças
causam reações negativas e desagradam quando dizem um sonoro “não pode!” a
pessoas que há muito repetem aquele mesmo comportamento, agora vedado.
O Brasil viu
esse fenômeno quando decidiu tornar obrigatório o uso do cinto de segurança.
Embora essa útil invenção tenha mais de cinquenta anos, o Brasil só viu a polêmica aumentar quando, em 1979, o
engenheiro Mário Fernando Petzhold desenvolveu o projeto que regulamentaria o
cinto de três pontos.
Em 1985,
houve uma primeira tentativa de torna-lo obrigatório, mas a população
recentemente saída de um regime repressor foi decididamente resistente. Em
1998, com a entrada em vigor do atual Código de Trânsito Brasileiro, a
discussão se polarizou entre os que acusavam serem os brasileiro incapazes de
cumprir leis, e os que viam o cinto de segurança como uma mentira da indústria
de automóveis criada para espoliar ainda mais os pobres consumidores. Sustentavam
inclusive que o cinto aumentaria o número de óbitos no trânsito ao “impedir” que
as vítimas deixassem o veículo após um acidente – enfim, típico fenômeno
tupiniquim quando leigos completos em dado assunto desandam a criar e divulgar
teorias sem qualquer embasamento técnico-teórico. Enfim, era mais uma lei que
nunca “pegaria”.
Desnecessário
dizer que, após alguns anos, poucos motoristas ainda se recusavam a afivelar o
simples acessório.
Com a
entrada em vigor da Lei 11.705, a polêmica “Lei Seca”, em 2008, o enredo se
repetiu. Esse diploma legal tornou infração atos até então considerados irrelevantes,
inofensivos mesmo. O conceito de beber e de bêbado são bastante fluidos na
nossa cultura: bêbado é o outro, o vizinho, o desconhecido da mesa ao lado;
beber não. Beber lembra comer na presença de amigos e parentes, mesa farta,
comida boa. Ficar de porre é algo que não atinge os nossos: eles sabem beber, e
o fazem em profusão, mas sem perder a compostura. Enfim, os desconhecidos
sempre bebem mais e costumam perder o controle do recato. Evidentemente, a lei
coercitiva deve ser aplicada apenas àqueles indisciplinados estranhos, nunca aos
nossos valorosos amigos.
A régua legal
trazida pela Lei Seca pôs todos esses códigos sociais ilógicos e de longa data abaixo
ao pôr um completo estranho, o policial atuante na blitz, para aplicar a lei a
todos, sem hesitação (afinal, ele não nenhuma daquelas pessoas), exigindo-se
que soprem no bafômetro. Igualitária e mecanicamente, sem espaço para a
relativização pela proximidade social.
De novo uma
lei cerceadora, novamente foram suscitados protestos de toda monta. A nova Lei
seria prejudicial para o comércio, ao reduzir o consumo em estabelecimentos
assentados na venda de bebidas alcoólicas. Novamente, leis e costumes travavam
disputa no ringue. Com o tempo, parece ter-se assentado na consciência nacional
que dirigir alcoolizado é irresponsável e constitui um delito intolerável.
Grande parte
dos problemas de trânsito no Brasil se devem à ilógica transformação do
automóvel em veículo de transporte de massa. Esta opção foi feita em detrimento
de todas as demais. Não só isso: simultaneamente a individualização do
transporte por meio dos automóveis, observa-se um descaso com o transporte
público coletivo, sem que se tomasse qualquer medida para tornar seus usuários
mais obedientes às regras de uso dos equipamentos públicos e, igualmente, sem
que se atualizassem as normas de uso das vias públicas.
De fato, optar-se
por meios de transporte que mantenham seus usuários a salvo do contato com
seres humanos pobres e ignorantes é uma atitude aristocrática plenamente em voga
no Brasil desde os tempos das liteiras e dos palanquins. Gilberto Freyre
revelava em “Sobrados e Mucambos” que a elite brasileira se opôs com afinco à entrada
em operação das carruagens, repetindo o mesmo comportamento mais tarde, com a
chegada dos bondes e dos trens. Isto é, a democratização dos espaços urbanos e
do uso dos equipamentos urbanos sempre foi mal vista pelas classes mais ricas.
Aliás, locomover-se,
por qualquer meio, sempre foi um obstáculo quase invencível na cidade do Rio de
Janeiro, diga-se. Viajantes que aqui estiveram ainda no século XIX já davam
testemunho do péssimo estado de conservação dos logradouros públicos. Caso uma
senhora desejasse sair de casa, fato raríssimo naqueles tempos, deveria chamar
uma carruagem ou uma cadeirinha. A cadeirinha era movida por dois carregadores,
um localizado na frente, o outro na retaguarda. Não lhes é permitido parar para
descansar – no máximo trocavam o ombro sacrificado durante a viagem. A
ornamentação delas dependia das possibilidades do seu dono.
Os
brasileiros preferimos formas de relacionamento social baseadas numa hierarquia
vertical: gostamos de saber quem manda nessa casa. Norma de natureza
aristocrática que reina em nossa sociedade há séculos, ela se opõe e anula as
formas horizontais de convivência social, isto é, que pregam a igualdade entre
os cidadãos.
Somente esse
fato explica o imenso regresso que representou o abandono do trem, modal de
deslocamento preferido para longas distâncias, e do bonde, espécie de trem para
pequenas distâncias, em benefício do automóvel, logo que os saltos econômicos
trazidos pelo desenvolvimentismo alimentaram o sonho individualista de que cada
qual tivesse seu próprio meio de transporte – além da possibilidade de se diferenciar
dos demais pelo preço de seu carro, símbolo de seu sucesso individual. E então
se iniciou nosso problema de falta de espaço nas vias públicas para todos os
veículos motorizados, grande parte dos quais transportando apenas um angustiado
e atrasado “supercidadão”.
O
desenvolvimento de motores e de instrumentos mecânicos no Brasil foi atrasado
pelo uso desmedido de escravos. Como sói ocorrer em sociedades eminentemente
escravistas, uma elite minuta conformado por clérigos, médicos, advogados
dedicava-se a legitimar, justificar um
sistema sem engenheiros e especialistas em propor resoluções para problemas
práticos cotidianos. O foco dos “doutos” era a manutenção do status quo, nunca
foi a inovação, o progresso. Aqui, os escravos eram tudo: carroças, veículos de
carga, esgoto, máquinas a vapor...
Os códigos
sociais usuais se refletem quando, ao volante de um carro, o cidadão-motorista
de pele clara, dono de uma carro caro, com mais dinheiro na conta bancária, bem inserido em relações de poder,
acha-se com o privilégio de mandar as regras de trânsito às favas e fazer uma singela
“bandalha”; que pode resultar num acidente de trânsito, que suscitará um
engarrafamento, dezenas de buzinas trovejando ao mesmo tempo, irritação,
cansaço etc.
O quadro
final que se desenha do país, apresenta atualmente uma modernidade em constante
movimento, veloz, dominada por relações sociais antiquíssimas, na qual o que
menos importa é a habilidade do motorista ou
a atenção do pedestre. O mundo moderno prevê regras simples e para
todos: Siga! Pare! A subjetividade de antanho não pode ter espaço.
Se o
comportamento de antigamente, quando trazido para a modernidade, deu azo ao
carnaval, ao jeitinho, à malandragem, à pequena de quase imperceptível
criminalidade, a contemporaneidade viu, por outro lado, um aumento exponencial
no número de mortos, um poder Judiciário atolado em processos e um sentimento
generalizado de insegurança.
Rubem L. de
F. Auto
Fonte: livro
“Fé em Deus e pé na tábua: ou como e por que o trânsito enlouquece no Brasil”
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