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sexta-feira, 7 de dezembro de 2018

SOCIEDADES, MERCADOS, PREÇOS... E OS VALORES QUE O VENTO LEVOU



Que tal assistir a um belo pôr do sol enquanto você volta à casa? E quanto a rir-se enquanto ouve de um amigo uma piada hilária? E o que diria de um mergulho num lindo coral com o fim de auxiliar um pescador em apuros, assumindo que você adora mergulhar?

Poderíamos chama-los bens – afinal, os três fazem um bem danado! Mas não poderíamos chama-los mercadorias. Isto porque mercadorias são bens que assumem a condição de mercadorias, são produzidos para serem vendidos. Impossível dizer que os bens descritos anteriormente podem ser vendidos. Podemos dizer, portanto, que toda mercadoria é um bem, mas nem todo bem é uma mercadoria.

E os bens que não são mercadorias não estão submetidos às regras de mercado; isto é, mesmo que o preço suba, a oferta não necessariamente subirá em consequência. Um exemplo prolífico é o mercado de sangue. Em muitos países, doadores de sangue são remunerados (?), ao passo que em muitos outros a doação é um ato voluntário. Pois bem: onde a oferta é maior? Você pode se surpreender, mas nos países onde a doação é não remunerada a oferta é maior. Podemos, portanto, classificar a doação de sangue como um “bem não mercadoria”. O valor inerente à doação altruísta, o valor imaterial, não pode ser expresso em valores puramente monetários.

Vale citar o entendimento de Oscar Wilde acerca do tema: pessoas cínicas são aquelas que sabem tudo sobre preço, mas nada sobre valores. Sabendo-se que as sociedades atuais são baseadas primordialmente no preço, não no valor, tornamo-nos fábricas de cínicos.

A própria palavra economia deriva de um fenômeno interessante ocorrido no âmbito das famílias: economia deriva de “oiko” (casa) e “nomia” , portanto gestão da casa. Uma família de camponeses costumava produzir quase tudo o que consumia: pão, queijo, conservas, carne, roupas. Quando sua produção era suficientemente grande, podia trocar seu excesso por bens que não poderia produzir, como foices, pêssegos etc. Quando a produção decepcionava, todos tinham de lidar com a escassez e eventuais trocas comerciais não eram possíveis.

Os últimos séculos viram uma conversão acelerada de bens fora do mercado em bens de mercado. Sua despensa certamente está amontoada de produtos cuja produção não demandou uma só gota de seu suor.

Mesmo o ferramental produtivo dos camponeses pouco a pouco é apropriado pelo mercado, como no caso das sementes transgênicas.

Contudo, existe uma diferença relevante entre termos: economias com mercado e economias de mercado. A transformação das primeiras nas segundas significou que as primeiras foram submetidas à cruel e fria lógica de mercado.

O processo foi, na verdade, bastante simples. Vejamos.

A ciência econômica prega que a produção necessita de três fatores de produção: trabalho, terra e capital. Isto é, trabalho humano, ferramentas, máquinas e espaço de produção. Nas sociedades mais primitivas, nenhum dos fatores era item de comércio. Durante o feudalismo, por exemplo, os servos trabalhavam e produziam, mas não punham sua produção no mercado. O senhor feudal simplesmente se apropriava de parte significativa da produção dos servos, à base da força. As ferramentas (meios de produção) eram construídas pelos próprios servos ou por artesãos, que recebiam alimentos dos servos em troca.

Quanto à terra, ou bem você nascia proprietário ou bem nascia servo – não havia mercado ou negociações envolvendo as propriedades.

A ascensão das sociedades de mercado se deu quando esses três fatores de produção passaram a ser negociados no mercado. Os trabalhadores negociam o valor de seu trabalho no mercado de trabalho; as ferramentas passaram a ser negociadas pelos artesãos no mercado de meios de produção; e as terras passaram a ser vendidas ou alugadas.

Esse fato veio no encalço do desenvolvimento da indústria de construção naval europeia. Somada à utilização das bússolas, inventadas pelos chineses e ao desenvolvimento de técnicas modernas de navegação, genoveses, florentinos, venezianos e portugueses deram forma ao comércio em escala global.

E daí surgiu uma rota comercial de importância basilar: comerciantes portugueses., holandeses, britânicos e espanhóis carregavam seu navios de lã da Inglaterra e da Escócia; esses tecidos eram negociados em Yokohama em troca de espadas japonesas. Na volta, paravam em Bombaim, na Índia, onde negociavam as espadas em troca de especiarias. Estas eram negociadas na Europa. O lucro permitia viagens semelhantes, mas em escala cada vez maior.

A consequência imediata disso foi a precificação da lã, da seda, das espadas de aço e das especiarias no mercado internacional. Em decorrência, tais produtos passaram a ser mais atrativos aos produtores, que logo deixaram de produzir cebolas e beterrabas e, no caso dos produtores ingleses, passaram a produzir lã. Para tanto, expulsaram os servos de suas terras e os substituíram por ovelhas. Foi o fim da paz e estabilidade que caracterizavam a vida feudal até então.

Essa foi a etapa fundamental para a transformação da Grã-Bretanha em uma sociedade de mercado. Dali em diante, o trabalho e a terra se tornaram mercadorias. Os trabalhadores expulsos de suas terras ancestrais se mudaram para as aldeias mais próximas e passaram a oferecer sua mão de obra em troca de um teto e alguma comida. Nascia o trabalho assalariado – afinal, era a única coisa que esses camponeses poderiam oferecer.

Até que o mercado conseguisse oferecer alguma alternativas razoáveis, não é difícil notar que grassavam a fome e doença na vida dos ex-servos e atuais desempregados ou subempregados.
O novo status que o fator de produção terra passou a desempenhar decorre também do que foi dito até aqui. Os senhores de terras viram o valor de suas propriedades alcançar novos patamares. Não demorou muito para que esses proprietários passassem a alugar parte de seus empreendimentos. Tais locatários pagavam o aluguel com parte da renda que obtinham da lã – e foram lançados no papel de empreendedores, não eram mais servos.

E assim, a grande maioria dos servos se viu vendendo sua força de trabalho no mercado de trabalho, ao passo que uma minoria de servos se viu tendo de comercializar seu trabalho, na forma de lã, em troca da renda necessária para pagar o aluguel das terras e de um pequeno lucro que lhes permitisse adquirir as mercadorias de que necessitavam.

A transformação da Grã-Bretanha em uma sociedade de mercado terminou quando, em meados do século XVIII, surgiram edifícios cinzentos e esfumaçados, pululadas de máquinas a vapor inventadas por James Watt: as fábricas. Foi ali que os camponeses desempregados encontraram guarida, suando bicas ao lado do vapor.

O fato de tais empreendimentos terem surgido na Grã-Bretanha, em vez de França ou China, deve-se ao fato de que as terras britânicas serem muito concentradas em um punhado de senhores feudais. Isso permitiu a articulação que possibilitou a expulsão dos camponeses em direção às cidades. Isso, somado à nova riqueza que jorrava das colônias britânicas, especialmente daquelas do Caribe. Tudo isso azeitado pelos novos bancos londrinos e pela máquina revolucionária criada por Watt.

Já o incentivo para construção de novas fábricas veio do mercado internacional, que demandava lã, têxteis, produtos de metal que agora poderiam ser produzidos mais rapidamente e com custo de mão de obra bastante reduzido.

As consequências, como sói serem em tudo nessa vida, foram tanto positivas como negativas. Se, por um lado, a nova sociedade de mercado pregava o fim do feudalismo, o fim das superstições ilógicas, o fim da teocracia obscurantista, se agora se falava em liberdade, em fim da escravidão, se agora o regozijo pelas novas tecnologias fazia crer que haveria bens suficientes para todos; por outro, todos agora eram escravos do mercado: vendiam seu trabalho por valores minguantes, dependiam da demanda do mercado para poderem pagar o aluguel das terras que ocupavam. Enfim, não eram poucos os que sentiam ainda mais empobrecidos.

Escalas de trabalho de mais de quatorze horas em fábricas e minas eram comuns; crianças de dez anos, acorrentadas dia e noite a máquinas foram matéria de jornais ingleses da época; mulheres grávidas trabalhavam em minas e chegavam a dar à luz no interior de galerias infestadas por gases tóxicos. Isso tudo sem falar nos inúmeros escravos africanos que alimentavam a produção de açúcar nas Antilhas.

Sem dúvidas, o que mais crescer desde então, em uma avassaladora escala global, foi a desigualdade: imensas riquezas vivendo lado a lado com uma pobreza acachapante.


Rubem L. de F. Auto

Fonte: livro “Conversando sobre economia com a minha filha”  

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