Que tal assistir a um belo pôr do sol enquanto você volta à
casa? E quanto a rir-se enquanto ouve de um amigo uma piada hilária? E o que
diria de um mergulho num lindo coral com o fim de auxiliar um pescador em
apuros, assumindo que você adora mergulhar?
Poderíamos chama-los bens – afinal, os três fazem um bem
danado! Mas não poderíamos chama-los mercadorias. Isto porque mercadorias são
bens que assumem a condição de mercadorias, são produzidos para serem vendidos.
Impossível dizer que os bens descritos anteriormente podem ser vendidos. Podemos
dizer, portanto, que toda mercadoria é um bem, mas nem todo bem é uma
mercadoria.
E os bens que não são mercadorias não estão submetidos às
regras de mercado; isto é, mesmo que o preço suba, a oferta não necessariamente
subirá em consequência. Um exemplo prolífico é o mercado de sangue. Em muitos
países, doadores de sangue são remunerados (?), ao passo que em muitos outros a
doação é um ato voluntário. Pois bem: onde a oferta é maior? Você pode se
surpreender, mas nos países onde a doação é não remunerada a oferta é maior.
Podemos, portanto, classificar a doação de sangue como um “bem não mercadoria”.
O valor inerente à doação altruísta, o valor imaterial, não pode ser expresso
em valores puramente monetários.
Vale citar o entendimento de Oscar Wilde acerca do tema:
pessoas cínicas são aquelas que sabem tudo sobre preço, mas nada sobre valores.
Sabendo-se que as sociedades atuais são baseadas primordialmente no preço, não
no valor, tornamo-nos fábricas de cínicos.
A própria palavra economia deriva de um fenômeno
interessante ocorrido no âmbito das famílias: economia deriva de “oiko” (casa)
e “nomia” , portanto gestão da casa. Uma família de camponeses costumava
produzir quase tudo o que consumia: pão, queijo, conservas, carne, roupas.
Quando sua produção era suficientemente grande, podia trocar seu excesso por bens
que não poderia produzir, como foices, pêssegos etc. Quando a produção
decepcionava, todos tinham de lidar com a escassez e eventuais trocas
comerciais não eram possíveis.
Os últimos séculos viram uma conversão acelerada de bens
fora do mercado em bens de mercado. Sua despensa certamente está amontoada de produtos
cuja produção não demandou uma só gota de seu suor.
Mesmo o ferramental produtivo dos camponeses pouco a pouco é
apropriado pelo mercado, como no caso das sementes transgênicas.
Contudo, existe uma diferença relevante entre termos:
economias com mercado e economias de mercado. A transformação das primeiras nas
segundas significou que as primeiras foram submetidas à cruel e fria lógica de
mercado.
O processo foi, na verdade, bastante simples. Vejamos.
A ciência econômica prega que a produção necessita de três
fatores de produção: trabalho, terra e capital. Isto é, trabalho humano,
ferramentas, máquinas e espaço de produção. Nas sociedades mais primitivas,
nenhum dos fatores era item de comércio. Durante o feudalismo, por exemplo, os
servos trabalhavam e produziam, mas não punham sua produção no mercado. O
senhor feudal simplesmente se apropriava de parte significativa da produção dos
servos, à base da força. As ferramentas (meios de produção) eram construídas
pelos próprios servos ou por artesãos, que recebiam alimentos dos servos em
troca.
Quanto à terra, ou bem você nascia proprietário ou bem
nascia servo – não havia mercado ou negociações envolvendo as propriedades.
A ascensão das sociedades de mercado se deu quando esses
três fatores de produção passaram a ser negociados no mercado. Os trabalhadores
negociam o valor de seu trabalho no mercado de trabalho; as ferramentas
passaram a ser negociadas pelos artesãos no mercado de meios de produção; e as
terras passaram a ser vendidas ou alugadas.
Esse fato veio no encalço do desenvolvimento da indústria de
construção naval europeia. Somada à utilização das bússolas, inventadas pelos
chineses e ao desenvolvimento de técnicas modernas de navegação, genoveses,
florentinos, venezianos e portugueses deram forma ao comércio em escala global.
E daí surgiu uma rota comercial de importância basilar:
comerciantes portugueses., holandeses, britânicos e espanhóis carregavam seu
navios de lã da Inglaterra e da Escócia; esses tecidos eram negociados em
Yokohama em troca de espadas japonesas. Na volta, paravam em Bombaim, na Índia,
onde negociavam as espadas em troca de especiarias. Estas eram negociadas na
Europa. O lucro permitia viagens semelhantes, mas em escala cada vez maior.
A consequência imediata disso foi a precificação da lã, da
seda, das espadas de aço e das especiarias no mercado internacional. Em decorrência,
tais produtos passaram a ser mais atrativos aos produtores, que logo deixaram
de produzir cebolas e beterrabas e, no caso dos produtores ingleses, passaram a
produzir lã. Para tanto, expulsaram os servos de suas terras e os substituíram
por ovelhas. Foi o fim da paz e estabilidade que caracterizavam a vida feudal
até então.
Essa foi a etapa fundamental para a transformação da
Grã-Bretanha em uma sociedade de mercado. Dali em diante, o trabalho e a terra
se tornaram mercadorias. Os trabalhadores expulsos de suas terras ancestrais se
mudaram para as aldeias mais próximas e passaram a oferecer sua mão de obra em
troca de um teto e alguma comida. Nascia o trabalho assalariado – afinal, era a
única coisa que esses camponeses poderiam oferecer.
Até que o mercado conseguisse oferecer alguma alternativas
razoáveis, não é difícil notar que grassavam a fome e doença na vida dos
ex-servos e atuais desempregados ou subempregados.
O novo status que o fator de produção terra passou a
desempenhar decorre também do que foi dito até aqui. Os senhores de terras
viram o valor de suas propriedades alcançar novos patamares. Não demorou muito
para que esses proprietários passassem a alugar parte de seus empreendimentos.
Tais locatários pagavam o aluguel com parte da renda que obtinham da lã – e foram
lançados no papel de empreendedores, não eram mais servos.
E assim, a grande maioria dos servos se viu vendendo sua
força de trabalho no mercado de trabalho, ao passo que uma minoria de servos se
viu tendo de comercializar seu trabalho, na forma de lã, em troca da renda
necessária para pagar o aluguel das terras e de um pequeno lucro que lhes
permitisse adquirir as mercadorias de que necessitavam.
A transformação da Grã-Bretanha em uma sociedade de mercado
terminou quando, em meados do século XVIII, surgiram edifícios cinzentos e
esfumaçados, pululadas de máquinas a vapor inventadas por James Watt: as
fábricas. Foi ali que os camponeses desempregados encontraram guarida, suando
bicas ao lado do vapor.
O fato de tais empreendimentos terem surgido na
Grã-Bretanha, em vez de França ou China, deve-se ao fato de que as terras
britânicas serem muito concentradas em um punhado de senhores feudais. Isso
permitiu a articulação que possibilitou a expulsão dos camponeses em direção às
cidades. Isso, somado à nova riqueza que jorrava das colônias britânicas,
especialmente daquelas do Caribe. Tudo isso azeitado pelos novos bancos
londrinos e pela máquina revolucionária criada por Watt.
Já o incentivo para construção de novas fábricas veio do
mercado internacional, que demandava lã, têxteis, produtos de metal que agora
poderiam ser produzidos mais rapidamente e com custo de mão de obra bastante
reduzido.
As consequências, como sói serem em tudo nessa vida, foram
tanto positivas como negativas. Se, por um lado, a nova sociedade de mercado
pregava o fim do feudalismo, o fim das superstições ilógicas, o fim da
teocracia obscurantista, se agora se falava em liberdade, em fim da escravidão,
se agora o regozijo pelas novas tecnologias fazia crer que haveria bens suficientes
para todos; por outro, todos agora eram escravos do mercado: vendiam seu
trabalho por valores minguantes, dependiam da demanda do mercado para poderem
pagar o aluguel das terras que ocupavam. Enfim, não eram poucos os que sentiam
ainda mais empobrecidos.
Escalas de trabalho de mais de quatorze horas em fábricas e
minas eram comuns; crianças de dez anos, acorrentadas dia e noite a máquinas
foram matéria de jornais ingleses da época; mulheres grávidas trabalhavam em
minas e chegavam a dar à luz no interior de galerias infestadas por gases
tóxicos. Isso tudo sem falar nos inúmeros escravos africanos que alimentavam a
produção de açúcar nas Antilhas.
Sem dúvidas, o que mais crescer desde então, em uma
avassaladora escala global, foi a desigualdade: imensas riquezas vivendo lado a
lado com uma pobreza acachapante.
Rubem L. de F. Auto
Fonte: livro “Conversando sobre economia com a minha filha”
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