Em sua obra “Conversando sobre economia com minha filha”, Yanis
Varoufákis expõe a seguinte questão: Por que foram os britânicos que invadiram
a Austrália e roubaram a terra aos aborígenes, em vez de ter acontecido o
contrário? Guardadas as devidas proporções, poderíamos transportar essa mesma
pergunta para nossa realidade: Por que foram os portugueses que invadiram o
Brasil e exterminaram os índios Tupi, Guaranis e tapuias em geral, mas não o
oposto?
Embora possa soar inicialmente um tanto absurdo, é um
questionamento que tem o poder de pôr fim a inúmeros preconceitos – como admitir
que os invasores teriam uma eventual superioridade genética, racial etc.
Admitir que os europeus foram mais rápidos e eficazes é falso, pois ser rápido
e eficaz é consequência de fatores anteriores, não causa. Responder que os índios
eram pessoas bondosas e generosas também não explica nada, exceto se eles
contassem com o arcabouço tecnológico que lhes permitissem navegar longas
distâncias portando armas superiores às dos demais povos – mas não as teriam utilizado
para conquistas pois teriam pena dos seus eventuais inimigos... Enfim, não foi
bem assim.
Um dos fatores que se apontam como raiz da superioridade de
povos europeus sobre os demais, em dado período histórico, é a existência do
mercado. Mas essa explicação também é um tanto falsa. Mercado é o nome da esfera
onde ocorrem trocas: troca-se dinheiro por produtos. E quem recebe o dinheiro
faz o mesmo: o proprietário do supermercado onde você trocou seu dinheiro por alimentos
usa o dinheiro do seu pagamento para trocar pelo trabalho dos seus
funcionários, para adquirir mais mercadorias etc. Contudo, caso o dinheiro não
existisse, ainda assim haveria mercado, pois o papel desempenhado pelo dinheiro
seria exercido pelas mercadorias de que dispomos e que podemos empregar em troca
de outras mercadorias, das quais necessitamos. Portanto o mercado se
caracteriza pela existência das trocas, não do dinheiro – atualmente inclusive
o mercado pode ser virtual, como no site da Amazon, ou no Marketplace da loja
de varejo de sua preferência.
De acordo com a explicação acima, havia mercado mesmo quando
vivíamos em cavernas, aliás, desde que habitávamos as árvores: quando um
primata oferecia uma banana em troca de uma maça, estava pondo em movimento a
locomotiva do mercado e segundo este, uma maça tinha o mesmo preço que uma
banana.
Mas daí, do mercado, até que se alcançasse o patamar de uma
economia, faltava um fator essencial: o produtor. Caçar, pescar, colher, não
geravam novas riquezas. Quem as estava gerando era a própria natureza, não os
participantes do mercado. Alguns desenvolvimentos intermediários era
fundamentais: há cerca de 82 mil anos aprendemos a utilizar nossas cordas
vocais para criar sons e estabelecer uma comunicação oral com nossos
semelhantes; há cerca de 12 mil anos demos um salto extraordinário, criamos a agricultura.
Agora tínhamos o ferramental para cultivar a terra e produzi alimentos – e
ainda podíamos, agora, ter uma boa conversa após um dia de labor. Enfim, temos
agora uma verdadeira economia.
Mas surge aqui uma pergunta: por que os humanos trocaram a
generosidade e abundância gratuitas da natureza, ao por alimentos diversos à
nossa disposição, ao custo de uma breve caçada ou de um passeio para colher
frutas, pelo trabalho estafante do campo, que deveria ser precedido pelo arado
da terra, pela semeadura, até a época da colheita e limpeza dos campos –
torcendo-se sempre para que as intempéries ou um inverno antecipado não pusessem
tudo a perder?
Bom, a resposta pode parecer estranha num primeiro momento:
fome! O período anterior ao da agricultura não foi marcado por humanos felizes
e bem alimentados, comendo caças e frutas por campos verdejantes. Os milhares
de anos de evolução nos levaram à situação em que não mais dispúnhamos de alimentos
em abundância, porque nossas habilidades no manuseio de armas levaram à
escassez de caça; a densidade humana já era suficiente para estabelecer uma concorrência
relevante por frutos. Por tudo isso precisávamos de criar métodos alternativos
de cultivo.
Como já preceitua o dito popular: a necessidade é a mãe de
todas as invenções. Com a tecnologia a agrícola não foi diferente. E seus
efeitos ressoam fundo na humanidade. Foi daí que surgiu o superávit: o nível de
produção que excede as nossas necessidades, gera as sementes para o plantio
seguinte e ainda sobra. É essa sobra que é apropriada pelo produtor, gerando
acúmulo de recursos, no caso, cereais para uso futuro.
A ideia de superávit simplesmente não coaduna com a vida
nômade do período anterior. Antes, caçávamos, pescávamos, colhíamos alimentos
prontos, cuja estocagem era impraticável. Por sua vez, a agricultura deu seus
passos iniciais com cereais (trigo, milho, cevada, arroz), cuja estocagem é
simples e eficiente.
E foi da instituição do superávit que decorreram muitas
outras, todas bastante familiares no nosso mundo atual: escrita, dívida,
dinheiro, Estado nacional, exército, clero, burocracia, tecnologia... até as
guerras bioquímicas foram gestadas a partir do superávit agrícola.
A escrita, por exemplo: surgida na Mesopotâmia, sua
finalidade era o registro da quantidade de cereais depositados nos celeiros
coletivos. Como era impraticável que cada agricultor dispusesse de seus
próprios celeiros, utilizavam-se celeiros comuns, controlados por um guardião,
onde eram depositados os superávits de cada um.
Inventar um sistema de escrita para que se pudessem emitir
recibos a agricultores que depositassem seus grãos em celeiros coletivos foi
algo não pensado por aborígenes australianos e indígenas americanos, por um
motivo muito simples: a abundância de recursos de caça, pesca e colheita era
tamanha que o máximo a que se lançaram foram pinturas artísticas e criações
musicais. Controlar produções individuais era algo impensável. Portanto, não
inventaram a escrita.
Bom, os agricultores contavam com trabalhadores em suas
terras. Muitos desses trabalhadores recebiam conchas, nas quais constavam os
quilos de trigo que o senhor da terra lhes devia. Esse trigo a débito do dono
das terras ainda será produzido, haja vista a dívida contra o trabalhador corresponder
à produção que ainda será gerada. Trata-se portanto de dívida futura. Mas, de
toda forma, tinham liquidez e eram usadas normalmente para aquisição de
mercadorias pelos trabalhadores.
Mas o grande salto veio a reboque da invenção da moeda em
metal. Embora, num primeiro momento, tendamos a crer que sua invenção decorreu
da necessidade de circulação da moeda, a história não foi bem essa. Na
Mesopotâmia, as moedas surgiram para registrar o quinhão de cada produtor do superávit
agrícola total. Havia até ensaios de moedas virtuais, quando no registro
contábil constava uma dívida em moeda, mas cujo pagamento se daria in natura. Em
outras sociedades as moedas metálicas eram tão pesadas que as unidades
monetárias eram basicamente virtuais, sem expressão no mundo físico.
A base sobre a qual se edificou todo o edifício dos sistemas
monetários, contudo, é a mesma: é preciso que todos creiam e respeitem os
padrões monetários. E a palavra “crer” vem do latim credere, ou credit, em
inglês.
Bem, para coordenar, executar e manter todo esse sistema
monetário, era necessária e existência de um ente a que hoje chamamos Estado.
Ito é, ainda que o dono da produção morresse, uma instituição coletiva se
encarregaria de entregar ao credor sua parte de direito no superávit total. E
era o Estado que garantia que o meio de pagamento circulante fosse fidedigno –
palavra derivada de “fide”, do latim para fé, ou seja, acreditar, crer.
A simples existência de
um Estado é impossível sem superávits. Burocratas que julguem lides em
torno de discordâncias quanto a valores devidos, policiais que garantam o
exercício do direito de propriedade, governantes em busca do poder, tudo isso se
sustenta na existência de superávits. Caso contrário, todos esses atores teriam
de enfrentar os dissabores na lida no campo. Pense bem: sem superávit não
haveria exército; portanto não haveria poder governamental; e assim o superávit
seria apropriado por outros povos mais bem equipados com recursos bélicos.
A distribuição injusta e desigual da sriquezas é uma
constante na história da humanidades. Quase smepre os superávits são
distribuídos em benefício dos cidadãos mais bem colocados na hierarquia social:
fossem militares que empunhassem as armas; fossem políticos poderosos, fossem
comerciantes muito ricos. Mas é difícil crer que a maioria das pessoas não
fosse capaze de pôr fim nessa relação nefasta entre Estado e poderosos.
Isso sempre se deu por meio do clero. Estes inculcavam nas
pessoas uma ideologia que legitimava o estado de coisas na sociedade. Eram eles
que convenciam as pessoas de que o governante de plantão o era por razões metafísicas
de direito. Seja por portarem “sangue azul”, seja por ordem divina, o
governante assim conseguia manter os 99% calados, enquanto o 1% privilegiado se
esbaldava no superávit coletivo.
E o poder do clero derivava do discurso de que eram
representantes terrenos de uma autoridade celeste inquestionável. E essa tarefa
era facilitada, pois o próprio clero criava as regras que o legitimavam frente
à sociedade. Mas os sacerdotes pertencentes ao clero também deviam sua
existência ao tal do superávit coletivo. Caso contrário, estariam empunhando
enxada, em vez de terços e hóstias.
As tecnologias que precederam a criação do superávit foram o
manuseio dos metais e do fogo. As invenções tecnológicas posteriores, por sua
vez, abundam e impressionam. Pois bem, temos aqui outra consequência direta do próprio
superávit. Foi a partir dele que mentes brilhantes puderam se concentrar em
inventar coisas úteis, em vez de emprestar sua força física para produzir os
alimentos que os manteriam vivos. E foi assim que o caminho ficou aberto para a
criação de arados, armas, joias, canais de irrigação etc.
Todavia, a morte não deixou de assombrar o mundo que surgiu
em decorrência do superávit agrícola. Assim que se passou a empilhar toneladas
de cereais nos silos comuns, somado às cidades e aldeias com uma densidade
populacional elevada, acompanhadas umbilicalmente pelos animais de corte e de
produção, gerou-se uma biomassa imensa que se tornou uma fábrica de bactérias
cuja produção era ininterrupta. Essas bactérias evoluíram e se tornaram monstros
mortais e quase incontroláveis. Trata-se de um novo e inédito estágio, nada
comparável às doenças que os humanos conheciam até então. Algumas delas
causaram ataques epidemiológicos cuja mortalidade fez retroceder o números de
pessoas em escala continental.
Mas a evolução é incontida: pouco a pouco nossos organismos
foram adquirindo tolerância e desenvolvendo resistência contra cada uma dessas
pragas. Assim foi com a cólera, o tifo, com o vírus da gripe, agora hospedeiros
de organismos imunes a eles. Tais carregavam consigo milhões de espécies dessas
bactérias.
Porém, ao travarem contato com pessoas que não haviam
passado por esse mesmo processo evolutivo, tornavam-se verdadeiras
bomba-relógio: um mero aperto de mão era suficiente para se iniciar uma epidemia
capaz de dizimar povos inteiros.
Na Austrália, nos EUA ou nas Américas essa foi a causa da
grande maioria das mortes que exterminaram os povos nativos. Evidentemente, não
demorou muito para que os europeus percebessem esse fato por si sós e o
utilizassem a seu favor, transformando roupas e tecidos infectados por tifo, e
dados de presente a tribos recentemente conhecidas, em armas de destruição em
massa.
Pois bem, retornando o raciocínio: sem escassez não haveria
superávit; sem superávit não existiria o mundo como o conhecemos... e como os
povos que não desenvolveram a tecnologia agrícola não tiveram a chance de
conhecer....
Rubem L. de F. Auto
Fonte: livro “Conversando sobre economia com a minha filha”
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