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quinta-feira, 6 de dezembro de 2018

O MÍNIMO DO ESTADO MÁXIMO E SEUS MÚLTIPLOS INCOMUNS



Em sua obra “Conversando sobre economia com minha filha”, Yanis Varoufákis expõe a seguinte questão: Por que foram os britânicos que invadiram a Austrália e roubaram a terra aos aborígenes, em vez de ter acontecido o contrário? Guardadas as devidas proporções, poderíamos transportar essa mesma pergunta para nossa realidade: Por que foram os portugueses que invadiram o Brasil e exterminaram os índios Tupi, Guaranis e tapuias em geral, mas não o oposto?

Embora possa soar inicialmente um tanto absurdo, é um questionamento que tem o poder de pôr fim a inúmeros preconceitos – como admitir que os invasores teriam uma eventual superioridade genética, racial etc. Admitir que os europeus foram mais rápidos e eficazes é falso, pois ser rápido e eficaz é consequência de fatores anteriores, não causa. Responder que os índios eram pessoas bondosas e generosas também não explica nada, exceto se eles contassem com o arcabouço tecnológico que lhes permitissem navegar longas distâncias portando armas superiores às dos demais povos – mas não as teriam utilizado para conquistas pois teriam pena dos seus eventuais inimigos... Enfim, não foi bem assim.

Um dos fatores que se apontam como raiz da superioridade de povos europeus sobre os demais, em dado período histórico, é a existência do mercado. Mas essa explicação também é um tanto falsa. Mercado é o nome da esfera onde ocorrem trocas: troca-se dinheiro por produtos. E quem recebe o dinheiro faz o mesmo: o proprietário do supermercado onde você trocou seu dinheiro por alimentos usa o dinheiro do seu pagamento para trocar pelo trabalho dos seus funcionários, para adquirir mais mercadorias etc. Contudo, caso o dinheiro não existisse, ainda assim haveria mercado, pois o papel desempenhado pelo dinheiro seria exercido pelas mercadorias de que dispomos e que podemos empregar em troca de outras mercadorias, das quais necessitamos. Portanto o mercado se caracteriza pela existência das trocas, não do dinheiro – atualmente inclusive o mercado pode ser virtual, como no site da Amazon, ou no Marketplace da loja de varejo de sua preferência.

De acordo com a explicação acima, havia mercado mesmo quando vivíamos em cavernas, aliás, desde que habitávamos as árvores: quando um primata oferecia uma banana em troca de uma maça, estava pondo em movimento a locomotiva do mercado e segundo este, uma maça tinha o mesmo preço que uma banana.

Mas daí, do mercado, até que se alcançasse o patamar de uma economia, faltava um fator essencial: o produtor. Caçar, pescar, colher, não geravam novas riquezas. Quem as estava gerando era a própria natureza, não os participantes do mercado. Alguns desenvolvimentos intermediários era fundamentais: há cerca de 82 mil anos aprendemos a utilizar nossas cordas vocais para criar sons e estabelecer uma comunicação oral com nossos semelhantes; há cerca de 12 mil anos demos um salto extraordinário, criamos a agricultura. Agora tínhamos o ferramental para cultivar a terra e produzi alimentos – e ainda podíamos, agora, ter uma boa conversa após um dia de labor. Enfim, temos agora uma verdadeira economia.

Mas surge aqui uma pergunta: por que os humanos trocaram a generosidade e abundância gratuitas da natureza, ao por alimentos diversos à nossa disposição, ao custo de uma breve caçada ou de um passeio para colher frutas, pelo trabalho estafante do campo, que deveria ser precedido pelo arado da terra, pela semeadura, até a época da colheita e limpeza dos campos – torcendo-se sempre para que as intempéries ou um inverno antecipado não pusessem tudo a perder?

Bom, a resposta pode parecer estranha num primeiro momento: fome! O período anterior ao da agricultura não foi marcado por humanos felizes e bem alimentados, comendo caças e frutas por campos verdejantes. Os milhares de anos de evolução nos levaram à situação em que não mais dispúnhamos de alimentos em abundância, porque nossas habilidades no manuseio de armas levaram à escassez de caça; a densidade humana já era suficiente para estabelecer uma concorrência relevante por frutos. Por tudo isso precisávamos de criar métodos alternativos de cultivo.  

Como já preceitua o dito popular: a necessidade é a mãe de todas as invenções. Com a tecnologia a agrícola não foi diferente. E seus efeitos ressoam fundo na humanidade. Foi daí que surgiu o superávit: o nível de produção que excede as nossas necessidades, gera as sementes para o plantio seguinte e ainda sobra. É essa sobra que é apropriada pelo produtor, gerando acúmulo de recursos, no caso, cereais para uso futuro.

A ideia de superávit simplesmente não coaduna com a vida nômade do período anterior. Antes, caçávamos, pescávamos, colhíamos alimentos prontos, cuja estocagem era impraticável. Por sua vez, a agricultura deu seus passos iniciais com cereais (trigo, milho, cevada, arroz), cuja estocagem é simples e eficiente.  

E foi da instituição do superávit que decorreram muitas outras, todas bastante familiares no nosso mundo atual: escrita, dívida, dinheiro, Estado nacional, exército, clero, burocracia, tecnologia... até as guerras bioquímicas foram gestadas a partir do superávit agrícola.

A escrita, por exemplo: surgida na Mesopotâmia, sua finalidade era o registro da quantidade de cereais depositados nos celeiros coletivos. Como era impraticável que cada agricultor dispusesse de seus próprios celeiros, utilizavam-se celeiros comuns, controlados por um guardião, onde eram depositados os superávits de cada um.

Inventar um sistema de escrita para que se pudessem emitir recibos a agricultores que depositassem seus grãos em celeiros coletivos foi algo não pensado por aborígenes australianos e indígenas americanos, por um motivo muito simples: a abundância de recursos de caça, pesca e colheita era tamanha que o máximo a que se lançaram foram pinturas artísticas e criações musicais. Controlar produções individuais era algo impensável. Portanto, não inventaram a escrita.

Bom, os agricultores contavam com trabalhadores em suas terras. Muitos desses trabalhadores recebiam conchas, nas quais constavam os quilos de trigo que o senhor da terra lhes devia. Esse trigo a débito do dono das terras ainda será produzido, haja vista a dívida contra o trabalhador corresponder à produção que ainda será gerada. Trata-se portanto de dívida futura. Mas, de toda forma, tinham liquidez e eram usadas normalmente para aquisição de mercadorias pelos trabalhadores.

Mas o grande salto veio a reboque da invenção da moeda em metal. Embora, num primeiro momento, tendamos a crer que sua invenção decorreu da necessidade de circulação da moeda, a história não foi bem essa. Na Mesopotâmia, as moedas surgiram para registrar o quinhão de cada produtor do superávit agrícola total. Havia até ensaios de moedas virtuais, quando no registro contábil constava uma dívida em moeda, mas cujo pagamento se daria in natura. Em outras sociedades as moedas metálicas eram tão pesadas que as unidades monetárias eram basicamente virtuais, sem expressão no mundo físico.

A base sobre a qual se edificou todo o edifício dos sistemas monetários, contudo, é a mesma: é preciso que todos creiam e respeitem os padrões monetários. E a palavra “crer” vem do latim credere, ou credit, em inglês.

Bem, para coordenar, executar e manter todo esse sistema monetário, era necessária e existência de um ente a que hoje chamamos Estado. Ito é, ainda que o dono da produção morresse, uma instituição coletiva se encarregaria de entregar ao credor sua parte de direito no superávit total. E era o Estado que garantia que o meio de pagamento circulante fosse fidedigno – palavra derivada de “fide”, do latim para fé, ou seja, acreditar, crer.

A simples existência de  um Estado é impossível sem superávits. Burocratas que julguem lides em torno de discordâncias quanto a valores devidos, policiais que garantam o exercício do direito de propriedade, governantes em busca do poder, tudo isso se sustenta na existência de superávits. Caso contrário, todos esses atores teriam de enfrentar os dissabores na lida no campo. Pense bem: sem superávit não haveria exército; portanto não haveria poder governamental; e assim o superávit seria apropriado por outros povos mais bem equipados com recursos bélicos.

A distribuição injusta e desigual da sriquezas é uma constante na história da humanidades. Quase smepre os superávits são distribuídos em benefício dos cidadãos mais bem colocados na hierarquia social: fossem militares que empunhassem as armas; fossem políticos poderosos, fossem comerciantes muito ricos. Mas é difícil crer que a maioria das pessoas não fosse capaze de pôr fim nessa relação nefasta entre Estado e poderosos.

Isso sempre se deu por meio do clero. Estes inculcavam nas pessoas uma ideologia que legitimava o estado de coisas na sociedade. Eram eles que convenciam as pessoas de que o governante de plantão o era por razões metafísicas de direito. Seja por portarem “sangue azul”, seja por ordem divina, o governante assim conseguia manter os 99% calados, enquanto o 1% privilegiado se esbaldava no superávit coletivo.

E o poder do clero derivava do discurso de que eram representantes terrenos de uma autoridade celeste inquestionável. E essa tarefa era facilitada, pois o próprio clero criava as regras que o legitimavam frente à sociedade. Mas os sacerdotes pertencentes ao clero também deviam sua existência ao tal do superávit coletivo. Caso contrário, estariam empunhando enxada, em vez de terços e hóstias.

As tecnologias que precederam a criação do superávit foram o manuseio dos metais e do fogo. As invenções tecnológicas posteriores, por sua vez, abundam e impressionam. Pois bem, temos aqui outra consequência direta do próprio superávit. Foi a partir dele que mentes brilhantes puderam se concentrar em inventar coisas úteis, em vez de emprestar sua força física para produzir os alimentos que os manteriam vivos. E foi assim que o caminho ficou aberto para a criação de arados, armas, joias, canais de irrigação etc.

Todavia, a morte não deixou de assombrar o mundo que surgiu em decorrência do superávit agrícola. Assim que se passou a empilhar toneladas de cereais nos silos comuns, somado às cidades e aldeias com uma densidade populacional elevada, acompanhadas umbilicalmente pelos animais de corte e de produção, gerou-se uma biomassa imensa que se tornou uma fábrica de bactérias cuja produção era ininterrupta. Essas bactérias evoluíram e se tornaram monstros mortais e quase incontroláveis. Trata-se de um novo e inédito estágio, nada comparável às doenças que os humanos conheciam até então. Algumas delas causaram ataques epidemiológicos cuja mortalidade fez retroceder o números de pessoas em escala continental.

Mas a evolução é incontida: pouco a pouco nossos organismos foram adquirindo tolerância e desenvolvendo resistência contra cada uma dessas pragas. Assim foi com a cólera, o tifo, com o vírus da gripe, agora hospedeiros de organismos imunes a eles. Tais carregavam consigo milhões de espécies dessas bactérias.

Porém, ao travarem contato com pessoas que não haviam passado por esse mesmo processo evolutivo, tornavam-se verdadeiras bomba-relógio: um mero aperto de mão era suficiente para se iniciar uma epidemia capaz de dizimar povos inteiros.

Na Austrália, nos EUA ou nas Américas essa foi a causa da grande maioria das mortes que exterminaram os povos nativos. Evidentemente, não demorou muito para que os europeus percebessem esse fato por si sós e o utilizassem a seu favor, transformando roupas e tecidos infectados por tifo, e dados de presente a tribos recentemente conhecidas, em armas de destruição em massa.

Pois bem, retornando o raciocínio: sem escassez não haveria superávit; sem superávit não existiria o mundo como o conhecemos... e como os povos que não desenvolveram a tecnologia agrícola não tiveram a chance de conhecer....


Rubem L. de F. Auto

Fonte: livro “Conversando sobre economia com a minha filha”

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