Foi o antropólogo Claude Lévi-Strauss quem usou a metáfora
dos alimentos crus e cozidos para falar de transformações sociais.
Nós, brasileiros, somos pródigos em relacionar mulheres e
comida: o doce tem conotação feminina; enquanto que o salgado e indigesto nos
fazem pensar em coisas difíceis, duras e mesmo cruéis. O mundo-cão que nos
cerca, o mundo da rua, dos percalços, do trabalho tem afinidade com o mundo
masculino, em oposição ao mundo dos doces e dos temperos das cozinhas, com suas
propriedades restauradoras.
Lévi-Strauss relacionava o cru à selvageria (o estado de
natureza); por seu turno, o cozido decorre de processos mais elaborados,
cultural ou ideologicamente.
Impossível não lembrar nosso brocardo ancestral: o apressado
come cru. A pressa e os alimentos em estado cru revelam uma pessoa rudimentar,
de modos rústicos, quase incivilizados; no extremo oposto, encontramos as
pessoas civilizadas, cultas, bem educadas e capazes de esperar o cozimento dos alimentos
que pretende consumir.
Aliás, apesar da triste consciência da existência de tantos
famintos e subalimentados que habitam ruas e favelas da nossa tão desigual
pátria, os alimentos nos trazem uma certa sensação de orgulho: feijoada,
rabada, cozidos são lembrados com água na boca e sugeridos a estrangeiros que
desejam “sentir o gosto” do Brasil.
Outra característica da relação entre brasileiros e alimentos
é que estes não nos levam em direção ao restaurante ou ao mercado, mas aos
amigos, à família, à casa. Como quase tudo nesse país, o privado traz conforto
e descanso, enquanto que o público se relaciona à desigualdade, aos privilégios
alheios, à insignificância social.
Funciona na contramão do que ocorre em outras paragens. Um
norte-americano provavelmente situaria o cru em casa, ambiente mais rústico do
que a complexidade social da rua, do mundo exterior, que faria mais sentido
relacionar ao cozido.
Outra oposição de conceitos interessante se dá entre “comida”
e “alimentos”. No Brasil, comer e alimentar-se são coisas distintas. Os
norte-americanos comem para viver: claro, inventaram o “fast food”. Comem em
pé, sentados, na companhia de estranhos ou de conhecidos... ou sozinhos. Já o
povo que vê alimento e comida distintamente nem sempre concorda que algo que
alimenta é gostoso, necessariamente – e muito menos é sempre socialmente
aceitável. O alimento mantém o organismo vivo; a comida é consumida com prazer,
usando-se de preparos nobres.
Descende daí nossa rejeição ao queijo: queijo é alimento para
humanos, mas é comida de ratos. Assim, queijo e rato passaram a andar de mãos
dadas no nosso inconsciente. Segue o mesmo raciocínio nossa relação com o
leite: leite é alimento para humanos, mas é comida para os bebês. E segue: osso
é comida de cachorro, milho é para galinhas... sanduíche é coisa de americanos.
Churrasco é comida de gaúcho, quem come vatapá é baiano, quem gosta de angu é
mineiro, polenta é coisa de paulista e feijoada é comida dos cariocas.
Unindo esses ingredientes todos num caldo bem grosso temos o
arroz com feijão, certamente a comida mais geralmente encontrada nas mesas
brasileiras.
O verbo comer nos legou um sem-número de conotações sociais:
pão-duro é sinônimo de avarento; “pão-pão-queijo-queijo” é usado para separar
as coisas, evitar confusão de significados ou de atores envolvidos em dado
acontecimento; “comer gato por lebre” revela uma pessoa ingênua ou mesmo ignorante;
certamente você já ouviu expressões como “água na boca”, “pego com a boca na
botija”; quem pode muito tem “a faca e o queijo na mão”. Ser convidado para “comes
e bebes” e falar “da boca para fora”.
Mais um pouco e caímos nas conotações mais sexuais e até
chulas. “Mulher oferecida não é comida” pode ser de uma grosseria sem tamanho, –
mulheres oferecidas se comportam como prostitutas, portanto são rejeitadas pela
sociedade e não se casam e constituem família, destino diferente das recatadas
e virgens de outrora - mas deixou muitos estrangeiros intrigados por nossas
associações entre comida e ato sexual.
Comer e praticar sexo predicam a imagem de que aquilo que é
comido é absorvido pelo comensal. Este engloba o que lhe é inferior
hierarquicamente, seja o alimento, seja a mulher (numa descrição tradicional) –
com uma breve observação de que o “comedor” de virgens e esposas pode ser
comido quando busca os favores de uma prostituta. Aqui, não é ele quem engloba
seu alimento.
É por isso que as mulheres fortes de nosso folclore, em
geral, possuem grandes habilidades na cozinha: Gabriela (Gabriela, Cravo e
Canela), Dona Flor; Xica da Silva era uma escrava que articulava com primor seus
temperos, de modo a inverter a relação de dominação com seu “senhor”. Isto é, perdem
a cabeça e põem o estômago em seu lugar, órgão que traduz melhor a igualdade
entre as pessoas.
As relações de
amizade também são pontuadas por metáforas gastronômicas. Quem passa
para o lado da ilegalidade ou da imoralidade se associou à “banda podre”. Quem
nos arranja um cargo público nos consegue uma “boca” – ou “boquinha”. Se for
mal remunerado, claro. Caso contrário, a boca vira uma “comilança no
Estado/Governo”. E para a mesa nós convidamos nossos amigos...
Há quem diga que a palavra companheiro deriva da expressão
em latim para “com pão”: companheiros são aqueles com quem dividimos o pão.
Por fim, vale notar que nossa culinária que mistura e
combina rima com nossa sociedade, que parece buscar sempre o relacionamento e a
boa avença.
Rubem L. de F. Auto
Fonte: livro “O que é o Brasil?”
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