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terça-feira, 18 de dezembro de 2018

EU COMO, EU COMO, EU COMO... VOCÊ! O CRU E O COZIDO NA MESA E NA CAMA



Foi o antropólogo Claude Lévi-Strauss quem usou a metáfora dos alimentos crus e cozidos para falar de transformações sociais.

Nós, brasileiros, somos pródigos em relacionar mulheres e comida: o doce tem conotação feminina; enquanto que o salgado e indigesto nos fazem pensar em coisas difíceis, duras e mesmo cruéis. O mundo-cão que nos cerca, o mundo da rua, dos percalços, do trabalho tem afinidade com o mundo masculino, em oposição ao mundo dos doces e dos temperos das cozinhas, com suas propriedades restauradoras.

Lévi-Strauss relacionava o cru à selvageria (o estado de natureza); por seu turno, o cozido decorre de processos mais elaborados, cultural ou ideologicamente.

Impossível não lembrar nosso brocardo ancestral: o apressado come cru. A pressa e os alimentos em estado cru revelam uma pessoa rudimentar, de modos rústicos, quase incivilizados; no extremo oposto, encontramos as pessoas civilizadas, cultas, bem educadas e capazes de esperar o cozimento dos alimentos que pretende consumir.

Aliás, apesar da triste consciência da existência de tantos famintos e subalimentados que habitam ruas e favelas da nossa tão desigual pátria, os alimentos nos trazem uma certa sensação de orgulho: feijoada, rabada, cozidos são lembrados com água na boca e sugeridos a estrangeiros que desejam “sentir o gosto” do Brasil.

Outra característica da relação entre brasileiros e alimentos é que estes não nos levam em direção ao restaurante ou ao mercado, mas aos amigos, à família, à casa. Como quase tudo nesse país, o privado traz conforto e descanso, enquanto que o público se relaciona à desigualdade, aos privilégios alheios, à insignificância social.

Funciona na contramão do que ocorre em outras paragens. Um norte-americano provavelmente situaria o cru em casa, ambiente mais rústico do que a complexidade social da rua, do mundo exterior, que faria mais sentido relacionar ao cozido.

Outra oposição de conceitos interessante se dá entre “comida” e “alimentos”. No Brasil, comer e alimentar-se são coisas distintas. Os norte-americanos comem para viver: claro, inventaram o “fast food”. Comem em pé, sentados, na companhia de estranhos ou de conhecidos... ou sozinhos. Já o povo que vê alimento e comida distintamente nem sempre concorda que algo que alimenta é gostoso, necessariamente – e muito menos é sempre socialmente aceitável. O alimento mantém o organismo vivo; a comida é consumida com prazer, usando-se de preparos nobres.

Descende daí nossa rejeição ao queijo: queijo é alimento para humanos, mas é comida de ratos. Assim, queijo e rato passaram a andar de mãos dadas no nosso inconsciente. Segue o mesmo raciocínio nossa relação com o leite: leite é alimento para humanos, mas é comida para os bebês. E segue: osso é comida de cachorro, milho é para galinhas... sanduíche é coisa de americanos. Churrasco é comida de gaúcho, quem come vatapá é baiano, quem gosta de angu é mineiro, polenta é coisa de paulista e feijoada é comida dos cariocas.

Unindo esses ingredientes todos num caldo bem grosso temos o arroz com feijão, certamente a comida mais geralmente encontrada nas mesas brasileiras.

O verbo comer nos legou um sem-número de conotações sociais: pão-duro é sinônimo de avarento; “pão-pão-queijo-queijo” é usado para separar as coisas, evitar confusão de significados ou de atores envolvidos em dado acontecimento; “comer gato por lebre” revela uma pessoa ingênua ou mesmo ignorante; certamente você já ouviu expressões como “água na boca”, “pego com a boca na botija”; quem pode muito tem “a faca e o queijo na mão”. Ser convidado para “comes e bebes” e falar “da boca para fora”.

Mais um pouco e caímos nas conotações mais sexuais e até chulas. “Mulher oferecida não é comida” pode ser de uma grosseria sem tamanho, – mulheres oferecidas se comportam como prostitutas, portanto são rejeitadas pela sociedade e não se casam e constituem família, destino diferente das recatadas e virgens de outrora - mas deixou muitos estrangeiros intrigados por nossas associações entre comida e ato sexual.

Comer e praticar sexo predicam a imagem de que aquilo que é comido é absorvido pelo comensal. Este engloba o que lhe é inferior hierarquicamente, seja o alimento, seja a mulher (numa descrição tradicional) – com uma breve observação de que o “comedor” de virgens e esposas pode ser comido quando busca os favores de uma prostituta. Aqui, não é ele quem engloba seu alimento.

É por isso que as mulheres fortes de nosso folclore, em geral, possuem grandes habilidades na cozinha: Gabriela (Gabriela, Cravo e Canela), Dona Flor; Xica da Silva era uma escrava que articulava com primor seus temperos, de modo a inverter a relação de dominação com seu “senhor”. Isto é, perdem a cabeça e põem o estômago em seu lugar, órgão que traduz melhor a igualdade entre as pessoas.

As relações de  amizade também são pontuadas por metáforas gastronômicas. Quem passa para o lado da ilegalidade ou da imoralidade se associou à “banda podre”. Quem nos arranja um cargo público nos consegue uma “boca” – ou “boquinha”. Se for mal remunerado, claro. Caso contrário, a boca vira uma “comilança no Estado/Governo”. E para a mesa nós convidamos nossos amigos...
Há quem diga que a palavra companheiro deriva da expressão em latim para “com pão”: companheiros são aqueles com quem dividimos o pão.

Por fim, vale notar que nossa culinária que mistura e combina rima com nossa sociedade, que parece buscar sempre o relacionamento e a boa avença.


Rubem L. de F. Auto

Fonte: livro “O que é o Brasil?”

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