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sexta-feira, 21 de dezembro de 2018

ASFALTARAM TUDO E PINTARAM DE CINZA



BIG YELLOW TAXI – GRANDE TAXI AMARELO

They paved paradise and put up a parking lot
With a pink hotel, a boutique, and a swingin' hot spot

Don't it always seem to go
That you don't know what you've got 'til it's gone?
They paved paradise, put up a parking lot
(Shoo-bop-bop-bop-bop
Shoo-bop-bop-bop-bop)

They took all the trees, put 'em in a tree museum
And they charged the people a dollar and a half just to see 'em

Don't it always seem to go
That you don't know what you've got 'til it's gone?
They paved paradise, put up a parking lot
(Shoo-bop-bop-bop-bop
Shoo-bop-bop-bop-bop)

Hey farmer, farmer, put away the DDT now
Give me spots on my apples
But leave me the birds and the bees, please

Don't it always seem to go
That you don't know what you've got 'til it's gone?
They paved paradise, put up a parking lot
(Shoo-bop-bop-bop-bop
Shoo-bop-bop-bop-bop)

Late last night, I heard the screen door slam
And a big yellow taxi took away my old man

Don't it always seem to go
That you don't know what you've got 'til it's gone?
They paved paradise, put up a parking lot
(Shoo-bop-bop-bop-bop)
I said, don't it always seem to go
That you don't know what you've got 'til it's gone?
They paved paradise, put up a parking lot
(Shoo-bop-bop-bop-bop)
They paved paradise, put up a parking lot
(Shoo-bop-bop-bop-bop)
They paved paradise, put up a parking lot
Pavimentaram o paraíso e construíram um estacionamento
Com um hotel rosa, uma butique e um ponto de encontro da moda.

Não parece sempre que acabou?
Que você não sabe o que tem até que o perca?
Pavimentaram o paraíso e construíram um estacionamento

Derrubaram todas as árvores e as puseram num museu
E cobram das pessoas um dólar e cinquenta para as verem

Não parece sempre que acabou?
(...)





Hei, fazendeiro, não use DDT
Deixe as manchinhas da minha maça
Mas deixe os pássaros e os bichinhos vivos, por favor

Não parece ....





Ontem, tarde da noite, ouvi a porta bater
E um grande taxi amarelo levou meu velho

Não parece ...





Rubem L. de F. Auto

quarta-feira, 19 de dezembro de 2018

UM ABRIGO CONTRA BOMBAS, UMA PROTEÇÃO PARA O AMOR



Gimme Shelter, Rolling Stones


Ooh, a storm is threat'ning
My very life today
If I don't get some shelter
Ooh yeah, I'm gonna fade away

War, children
It's just a shot away, it's just a shot away
War, children
It's just a shot away, it's just a shot away

Ooh, see the fire is sweeping
Our very street today
Burns like a red coal carpet
Mad bull lost your way

War, children
It's just a shot away, it's just a shot away
War, children
It's just a shot away, it's just a shot away


Rape, murder!
It's just a shot away, it's just a shot away
Rape, murder!
It's just a shot away, it's just a shot away
Rape, murder!
It's just a shot away, it's just a shot away

Mmm, the floods is threat'ning
My very life today
Gimme, gimme shelter
Or I'm going to fade away

War, children
It's just a shot away, it's just a shot away
It's just a shot away, it's just a shot away
It's just a shot away

I tell you love, sister
It's just a kiss away, it's just a kiss away
It's just a kiss away, it's just a kiss away
It's just a kiss away, (kiss away kiss away)
Oh, uma tempestade ameaça
A minha bela vida hoje
Se não tiver um abrigo
Oh, sim, vou perecer

A guerra, crianças
É só atirar, só atirar
A guerra, crianças
É só atirar, só atirar

Oh, vejam o fogo está varrendo
Nossas belas ruas hoje
Queima como um tapete de carvão em brasa
O touro louco está à solta

A guerra, crianças
É só dar um tiro, só atirar
A guerra, crianças
É só dar um tiro, só atirar


Estupro, assassinato!
É só atirar, só atirar
Estupro, assassinato!
É só atirar, só atirar
(...)


Mmmm, a inundação está ameaçando
Minha bela vida hoje
Dê-me, dê-me abrigo
Ou eu vou morrer

A guerra, crianças
É só atirar (...)



Eu falo de amor, irmã
É só beijar, só beijar
(...)


Rubem L. de F. Auto

terça-feira, 18 de dezembro de 2018

EU COMO, EU COMO, EU COMO... VOCÊ! O CRU E O COZIDO NA MESA E NA CAMA



Foi o antropólogo Claude Lévi-Strauss quem usou a metáfora dos alimentos crus e cozidos para falar de transformações sociais.

Nós, brasileiros, somos pródigos em relacionar mulheres e comida: o doce tem conotação feminina; enquanto que o salgado e indigesto nos fazem pensar em coisas difíceis, duras e mesmo cruéis. O mundo-cão que nos cerca, o mundo da rua, dos percalços, do trabalho tem afinidade com o mundo masculino, em oposição ao mundo dos doces e dos temperos das cozinhas, com suas propriedades restauradoras.

Lévi-Strauss relacionava o cru à selvageria (o estado de natureza); por seu turno, o cozido decorre de processos mais elaborados, cultural ou ideologicamente.

Impossível não lembrar nosso brocardo ancestral: o apressado come cru. A pressa e os alimentos em estado cru revelam uma pessoa rudimentar, de modos rústicos, quase incivilizados; no extremo oposto, encontramos as pessoas civilizadas, cultas, bem educadas e capazes de esperar o cozimento dos alimentos que pretende consumir.

Aliás, apesar da triste consciência da existência de tantos famintos e subalimentados que habitam ruas e favelas da nossa tão desigual pátria, os alimentos nos trazem uma certa sensação de orgulho: feijoada, rabada, cozidos são lembrados com água na boca e sugeridos a estrangeiros que desejam “sentir o gosto” do Brasil.

Outra característica da relação entre brasileiros e alimentos é que estes não nos levam em direção ao restaurante ou ao mercado, mas aos amigos, à família, à casa. Como quase tudo nesse país, o privado traz conforto e descanso, enquanto que o público se relaciona à desigualdade, aos privilégios alheios, à insignificância social.

Funciona na contramão do que ocorre em outras paragens. Um norte-americano provavelmente situaria o cru em casa, ambiente mais rústico do que a complexidade social da rua, do mundo exterior, que faria mais sentido relacionar ao cozido.

Outra oposição de conceitos interessante se dá entre “comida” e “alimentos”. No Brasil, comer e alimentar-se são coisas distintas. Os norte-americanos comem para viver: claro, inventaram o “fast food”. Comem em pé, sentados, na companhia de estranhos ou de conhecidos... ou sozinhos. Já o povo que vê alimento e comida distintamente nem sempre concorda que algo que alimenta é gostoso, necessariamente – e muito menos é sempre socialmente aceitável. O alimento mantém o organismo vivo; a comida é consumida com prazer, usando-se de preparos nobres.

Descende daí nossa rejeição ao queijo: queijo é alimento para humanos, mas é comida de ratos. Assim, queijo e rato passaram a andar de mãos dadas no nosso inconsciente. Segue o mesmo raciocínio nossa relação com o leite: leite é alimento para humanos, mas é comida para os bebês. E segue: osso é comida de cachorro, milho é para galinhas... sanduíche é coisa de americanos. Churrasco é comida de gaúcho, quem come vatapá é baiano, quem gosta de angu é mineiro, polenta é coisa de paulista e feijoada é comida dos cariocas.

Unindo esses ingredientes todos num caldo bem grosso temos o arroz com feijão, certamente a comida mais geralmente encontrada nas mesas brasileiras.

O verbo comer nos legou um sem-número de conotações sociais: pão-duro é sinônimo de avarento; “pão-pão-queijo-queijo” é usado para separar as coisas, evitar confusão de significados ou de atores envolvidos em dado acontecimento; “comer gato por lebre” revela uma pessoa ingênua ou mesmo ignorante; certamente você já ouviu expressões como “água na boca”, “pego com a boca na botija”; quem pode muito tem “a faca e o queijo na mão”. Ser convidado para “comes e bebes” e falar “da boca para fora”.

Mais um pouco e caímos nas conotações mais sexuais e até chulas. “Mulher oferecida não é comida” pode ser de uma grosseria sem tamanho, – mulheres oferecidas se comportam como prostitutas, portanto são rejeitadas pela sociedade e não se casam e constituem família, destino diferente das recatadas e virgens de outrora - mas deixou muitos estrangeiros intrigados por nossas associações entre comida e ato sexual.

Comer e praticar sexo predicam a imagem de que aquilo que é comido é absorvido pelo comensal. Este engloba o que lhe é inferior hierarquicamente, seja o alimento, seja a mulher (numa descrição tradicional) – com uma breve observação de que o “comedor” de virgens e esposas pode ser comido quando busca os favores de uma prostituta. Aqui, não é ele quem engloba seu alimento.

É por isso que as mulheres fortes de nosso folclore, em geral, possuem grandes habilidades na cozinha: Gabriela (Gabriela, Cravo e Canela), Dona Flor; Xica da Silva era uma escrava que articulava com primor seus temperos, de modo a inverter a relação de dominação com seu “senhor”. Isto é, perdem a cabeça e põem o estômago em seu lugar, órgão que traduz melhor a igualdade entre as pessoas.

As relações de  amizade também são pontuadas por metáforas gastronômicas. Quem passa para o lado da ilegalidade ou da imoralidade se associou à “banda podre”. Quem nos arranja um cargo público nos consegue uma “boca” – ou “boquinha”. Se for mal remunerado, claro. Caso contrário, a boca vira uma “comilança no Estado/Governo”. E para a mesa nós convidamos nossos amigos...
Há quem diga que a palavra companheiro deriva da expressão em latim para “com pão”: companheiros são aqueles com quem dividimos o pão.

Por fim, vale notar que nossa culinária que mistura e combina rima com nossa sociedade, que parece buscar sempre o relacionamento e a boa avença.


Rubem L. de F. Auto

Fonte: livro “O que é o Brasil?”

segunda-feira, 17 de dezembro de 2018

DURANGO KID SÓ EXISTE NO GIBI...



DISPOSABLE HEROES – HERÓIS DESCARTÁVEIS

METALLICA


Essa canção faz parte do álbum Master of Puppets, ou  “Mestre dos Fantoches”, mais uma metáfora envolvendo Governos, Guerras e pessoas comuns morrendo a mando de poderosos.

  
[Verse 1]
Bodies fill the fields I see, hungry heroes end
No one to play soldier now, no one to pretend
Running blind through killing fields, bred to kill them all
Victim of what said should be, a servant 'til I fall

[Pre-Chorus]
Soldier boy, made of clay, now an empty shell
Twenty-one, only son, but he served us well
Bred to kill, not to care, do just as we say
Finished here, greeting death, he's yours to take away

[Chorus]
Back to the front
You will do what I say, when I say
Back to the front
You will die when I say, you must die
Back to the front
You coward, you servant, you blind man

[Verse 2]
Barking of machine-gun fire, does nothing to me now
Sounding of the clock that ticks, get used to it somehow
More a man, more stripes you wear, glory seeker trends
Bodies fill the fields I see, the slaughter never ends

[Pre-Chorus]
Soldier boy, made of clay, now an empty shell
Twenty-one, only son, but he served us well
Bred to kill, not to care, do just as we say
Finished here, greeting death, he's yours to take away

[Chorus]
Back to the front
You will do what I say, when I say
Back to the front
You will die when I say, you must die
Back to the front
You coward, you servant, you blind man

[Bridge]
Why am I dying?
Kill! Have no fear
Lie! Live off lying
Hell! Hell is here

[Guitar Solo]

Why am I dying?
Kill! Have no fear
Lie! Live off lying
Hell! Hell is here
I was born for dying

[Verse 3]
Life planned out before my birth, nothing could I say
Had no chance to see myself, molded day by day
Looking back I realize, nothing have I done
Left to die with only friend, alone, I clench my gun

[Pre-Chorus]
Soldier boy, made of clay, now an empty shell
Twenty-one, only son, but he served us well
Bred to kill, not to care, do just as we say
Finished here, greeting death, he's yours to take away

[Chorus]
Back to the front
You will do what I say, when I say
Back to the front
You will die when I say, you must die
Back to the front
You coward, you servant, you blind man
Back to the front

[Outro]
Back to the front
Back to the front
Back to the front
Back to the front
Corpos cobrem os campos até onde eu vejo, o fim de heróis esfomeados.
Ninguém para brinca de soldado, ninguém com quem fingir.
Correndo cego pelos campos de corpos mortos, nasci para matar eles todos
Vítima do que disse que deveria ser, um servo até morrer

Menino soldado, feito de barro, agora é uma ostra vazia.
21 anos de idade, filho único, mas serviu à gente muito bem.
Nascido para matar, não para cuidar, faça apenas o que mandamos.
Finalizado aqui, saúde o corpo, ele é seu, pode levar.

De volta ao front.
Você fará o que eu mandar, quando eu mandar.
De volta ao front,
Você vai morrer quando eu mandar, você precisa morrer.
De volta ao front,
Você, covarde; você, servo; você, cego.

O som da metralhadora gritando, não me causa mais emoção.
O som de marcadores num relógio, já me acostumei com isso.
Quanto mais homem, mais listras tem seu uniforme, coisas de quem procura a glória
Corpos enchem os campos que eu vejo, o massacre nunca acaba

(...)




(...)







Por que estou morrendo?
Morra! Não tenho medo.
Minta. Viva mentindo.
Inferno! O inferno é aqui.

(...)





(...)
Nasci para morrer.

A vida planejada para mim antes que eu nascesse, nada que eu pudesse fazer.
Não tive a chance de me ver no espelho, moldado dia a dia.
Olhando para trás vejo, nada que eu fizesse.
Deixado para morrer, com um único amigo, sozinho, abraço minha arma.


(...)






(...)









(...)  


Rubem L. de F. Auto

quarta-feira, 12 de dezembro de 2018

AGENTE SMITH X O BICHO-HOMEM



“Eu tentei classificar sua espécie e me dei conta de que vocês não são de fato mamíferos. Todo mamífero neste planeta desenvolve instintivamente um equilíbrio natural com o ambiente em que vive, vocês são uma exceção. Vocês se mudam para um local e se multiplicam e se multiplicam até que todos os recursos naturais sejam consumidos e a única maneira de sobreviver seja se espalhar para outra área. Existe outro organismo neste planeta que segue o mesmo comportamento que vocês. Você sabe qual é? O vírus. Vocês, seres humanos, são uma doença, um câncer para este planeta. Vocês são uma epidemia e nós, as máquinas, somos a cura.”

AGENTE SMITH, FILME MATRIX, BATENDO UM PAPO-CABEÇA COM NEO 



Rubem L. de F. Auto

sexta-feira, 7 de dezembro de 2018

SOCIEDADES, MERCADOS, PREÇOS... E OS VALORES QUE O VENTO LEVOU



Que tal assistir a um belo pôr do sol enquanto você volta à casa? E quanto a rir-se enquanto ouve de um amigo uma piada hilária? E o que diria de um mergulho num lindo coral com o fim de auxiliar um pescador em apuros, assumindo que você adora mergulhar?

Poderíamos chama-los bens – afinal, os três fazem um bem danado! Mas não poderíamos chama-los mercadorias. Isto porque mercadorias são bens que assumem a condição de mercadorias, são produzidos para serem vendidos. Impossível dizer que os bens descritos anteriormente podem ser vendidos. Podemos dizer, portanto, que toda mercadoria é um bem, mas nem todo bem é uma mercadoria.

E os bens que não são mercadorias não estão submetidos às regras de mercado; isto é, mesmo que o preço suba, a oferta não necessariamente subirá em consequência. Um exemplo prolífico é o mercado de sangue. Em muitos países, doadores de sangue são remunerados (?), ao passo que em muitos outros a doação é um ato voluntário. Pois bem: onde a oferta é maior? Você pode se surpreender, mas nos países onde a doação é não remunerada a oferta é maior. Podemos, portanto, classificar a doação de sangue como um “bem não mercadoria”. O valor inerente à doação altruísta, o valor imaterial, não pode ser expresso em valores puramente monetários.

Vale citar o entendimento de Oscar Wilde acerca do tema: pessoas cínicas são aquelas que sabem tudo sobre preço, mas nada sobre valores. Sabendo-se que as sociedades atuais são baseadas primordialmente no preço, não no valor, tornamo-nos fábricas de cínicos.

A própria palavra economia deriva de um fenômeno interessante ocorrido no âmbito das famílias: economia deriva de “oiko” (casa) e “nomia” , portanto gestão da casa. Uma família de camponeses costumava produzir quase tudo o que consumia: pão, queijo, conservas, carne, roupas. Quando sua produção era suficientemente grande, podia trocar seu excesso por bens que não poderia produzir, como foices, pêssegos etc. Quando a produção decepcionava, todos tinham de lidar com a escassez e eventuais trocas comerciais não eram possíveis.

Os últimos séculos viram uma conversão acelerada de bens fora do mercado em bens de mercado. Sua despensa certamente está amontoada de produtos cuja produção não demandou uma só gota de seu suor.

Mesmo o ferramental produtivo dos camponeses pouco a pouco é apropriado pelo mercado, como no caso das sementes transgênicas.

Contudo, existe uma diferença relevante entre termos: economias com mercado e economias de mercado. A transformação das primeiras nas segundas significou que as primeiras foram submetidas à cruel e fria lógica de mercado.

O processo foi, na verdade, bastante simples. Vejamos.

A ciência econômica prega que a produção necessita de três fatores de produção: trabalho, terra e capital. Isto é, trabalho humano, ferramentas, máquinas e espaço de produção. Nas sociedades mais primitivas, nenhum dos fatores era item de comércio. Durante o feudalismo, por exemplo, os servos trabalhavam e produziam, mas não punham sua produção no mercado. O senhor feudal simplesmente se apropriava de parte significativa da produção dos servos, à base da força. As ferramentas (meios de produção) eram construídas pelos próprios servos ou por artesãos, que recebiam alimentos dos servos em troca.

Quanto à terra, ou bem você nascia proprietário ou bem nascia servo – não havia mercado ou negociações envolvendo as propriedades.

A ascensão das sociedades de mercado se deu quando esses três fatores de produção passaram a ser negociados no mercado. Os trabalhadores negociam o valor de seu trabalho no mercado de trabalho; as ferramentas passaram a ser negociadas pelos artesãos no mercado de meios de produção; e as terras passaram a ser vendidas ou alugadas.

Esse fato veio no encalço do desenvolvimento da indústria de construção naval europeia. Somada à utilização das bússolas, inventadas pelos chineses e ao desenvolvimento de técnicas modernas de navegação, genoveses, florentinos, venezianos e portugueses deram forma ao comércio em escala global.

E daí surgiu uma rota comercial de importância basilar: comerciantes portugueses., holandeses, britânicos e espanhóis carregavam seu navios de lã da Inglaterra e da Escócia; esses tecidos eram negociados em Yokohama em troca de espadas japonesas. Na volta, paravam em Bombaim, na Índia, onde negociavam as espadas em troca de especiarias. Estas eram negociadas na Europa. O lucro permitia viagens semelhantes, mas em escala cada vez maior.

A consequência imediata disso foi a precificação da lã, da seda, das espadas de aço e das especiarias no mercado internacional. Em decorrência, tais produtos passaram a ser mais atrativos aos produtores, que logo deixaram de produzir cebolas e beterrabas e, no caso dos produtores ingleses, passaram a produzir lã. Para tanto, expulsaram os servos de suas terras e os substituíram por ovelhas. Foi o fim da paz e estabilidade que caracterizavam a vida feudal até então.

Essa foi a etapa fundamental para a transformação da Grã-Bretanha em uma sociedade de mercado. Dali em diante, o trabalho e a terra se tornaram mercadorias. Os trabalhadores expulsos de suas terras ancestrais se mudaram para as aldeias mais próximas e passaram a oferecer sua mão de obra em troca de um teto e alguma comida. Nascia o trabalho assalariado – afinal, era a única coisa que esses camponeses poderiam oferecer.

Até que o mercado conseguisse oferecer alguma alternativas razoáveis, não é difícil notar que grassavam a fome e doença na vida dos ex-servos e atuais desempregados ou subempregados.
O novo status que o fator de produção terra passou a desempenhar decorre também do que foi dito até aqui. Os senhores de terras viram o valor de suas propriedades alcançar novos patamares. Não demorou muito para que esses proprietários passassem a alugar parte de seus empreendimentos. Tais locatários pagavam o aluguel com parte da renda que obtinham da lã – e foram lançados no papel de empreendedores, não eram mais servos.

E assim, a grande maioria dos servos se viu vendendo sua força de trabalho no mercado de trabalho, ao passo que uma minoria de servos se viu tendo de comercializar seu trabalho, na forma de lã, em troca da renda necessária para pagar o aluguel das terras e de um pequeno lucro que lhes permitisse adquirir as mercadorias de que necessitavam.

A transformação da Grã-Bretanha em uma sociedade de mercado terminou quando, em meados do século XVIII, surgiram edifícios cinzentos e esfumaçados, pululadas de máquinas a vapor inventadas por James Watt: as fábricas. Foi ali que os camponeses desempregados encontraram guarida, suando bicas ao lado do vapor.

O fato de tais empreendimentos terem surgido na Grã-Bretanha, em vez de França ou China, deve-se ao fato de que as terras britânicas serem muito concentradas em um punhado de senhores feudais. Isso permitiu a articulação que possibilitou a expulsão dos camponeses em direção às cidades. Isso, somado à nova riqueza que jorrava das colônias britânicas, especialmente daquelas do Caribe. Tudo isso azeitado pelos novos bancos londrinos e pela máquina revolucionária criada por Watt.

Já o incentivo para construção de novas fábricas veio do mercado internacional, que demandava lã, têxteis, produtos de metal que agora poderiam ser produzidos mais rapidamente e com custo de mão de obra bastante reduzido.

As consequências, como sói serem em tudo nessa vida, foram tanto positivas como negativas. Se, por um lado, a nova sociedade de mercado pregava o fim do feudalismo, o fim das superstições ilógicas, o fim da teocracia obscurantista, se agora se falava em liberdade, em fim da escravidão, se agora o regozijo pelas novas tecnologias fazia crer que haveria bens suficientes para todos; por outro, todos agora eram escravos do mercado: vendiam seu trabalho por valores minguantes, dependiam da demanda do mercado para poderem pagar o aluguel das terras que ocupavam. Enfim, não eram poucos os que sentiam ainda mais empobrecidos.

Escalas de trabalho de mais de quatorze horas em fábricas e minas eram comuns; crianças de dez anos, acorrentadas dia e noite a máquinas foram matéria de jornais ingleses da época; mulheres grávidas trabalhavam em minas e chegavam a dar à luz no interior de galerias infestadas por gases tóxicos. Isso tudo sem falar nos inúmeros escravos africanos que alimentavam a produção de açúcar nas Antilhas.

Sem dúvidas, o que mais crescer desde então, em uma avassaladora escala global, foi a desigualdade: imensas riquezas vivendo lado a lado com uma pobreza acachapante.


Rubem L. de F. Auto

Fonte: livro “Conversando sobre economia com a minha filha”  

quinta-feira, 6 de dezembro de 2018

O MÍNIMO DO ESTADO MÁXIMO E SEUS MÚLTIPLOS INCOMUNS



Em sua obra “Conversando sobre economia com minha filha”, Yanis Varoufákis expõe a seguinte questão: Por que foram os britânicos que invadiram a Austrália e roubaram a terra aos aborígenes, em vez de ter acontecido o contrário? Guardadas as devidas proporções, poderíamos transportar essa mesma pergunta para nossa realidade: Por que foram os portugueses que invadiram o Brasil e exterminaram os índios Tupi, Guaranis e tapuias em geral, mas não o oposto?

Embora possa soar inicialmente um tanto absurdo, é um questionamento que tem o poder de pôr fim a inúmeros preconceitos – como admitir que os invasores teriam uma eventual superioridade genética, racial etc. Admitir que os europeus foram mais rápidos e eficazes é falso, pois ser rápido e eficaz é consequência de fatores anteriores, não causa. Responder que os índios eram pessoas bondosas e generosas também não explica nada, exceto se eles contassem com o arcabouço tecnológico que lhes permitissem navegar longas distâncias portando armas superiores às dos demais povos – mas não as teriam utilizado para conquistas pois teriam pena dos seus eventuais inimigos... Enfim, não foi bem assim.

Um dos fatores que se apontam como raiz da superioridade de povos europeus sobre os demais, em dado período histórico, é a existência do mercado. Mas essa explicação também é um tanto falsa. Mercado é o nome da esfera onde ocorrem trocas: troca-se dinheiro por produtos. E quem recebe o dinheiro faz o mesmo: o proprietário do supermercado onde você trocou seu dinheiro por alimentos usa o dinheiro do seu pagamento para trocar pelo trabalho dos seus funcionários, para adquirir mais mercadorias etc. Contudo, caso o dinheiro não existisse, ainda assim haveria mercado, pois o papel desempenhado pelo dinheiro seria exercido pelas mercadorias de que dispomos e que podemos empregar em troca de outras mercadorias, das quais necessitamos. Portanto o mercado se caracteriza pela existência das trocas, não do dinheiro – atualmente inclusive o mercado pode ser virtual, como no site da Amazon, ou no Marketplace da loja de varejo de sua preferência.

De acordo com a explicação acima, havia mercado mesmo quando vivíamos em cavernas, aliás, desde que habitávamos as árvores: quando um primata oferecia uma banana em troca de uma maça, estava pondo em movimento a locomotiva do mercado e segundo este, uma maça tinha o mesmo preço que uma banana.

Mas daí, do mercado, até que se alcançasse o patamar de uma economia, faltava um fator essencial: o produtor. Caçar, pescar, colher, não geravam novas riquezas. Quem as estava gerando era a própria natureza, não os participantes do mercado. Alguns desenvolvimentos intermediários era fundamentais: há cerca de 82 mil anos aprendemos a utilizar nossas cordas vocais para criar sons e estabelecer uma comunicação oral com nossos semelhantes; há cerca de 12 mil anos demos um salto extraordinário, criamos a agricultura. Agora tínhamos o ferramental para cultivar a terra e produzi alimentos – e ainda podíamos, agora, ter uma boa conversa após um dia de labor. Enfim, temos agora uma verdadeira economia.

Mas surge aqui uma pergunta: por que os humanos trocaram a generosidade e abundância gratuitas da natureza, ao por alimentos diversos à nossa disposição, ao custo de uma breve caçada ou de um passeio para colher frutas, pelo trabalho estafante do campo, que deveria ser precedido pelo arado da terra, pela semeadura, até a época da colheita e limpeza dos campos – torcendo-se sempre para que as intempéries ou um inverno antecipado não pusessem tudo a perder?

Bom, a resposta pode parecer estranha num primeiro momento: fome! O período anterior ao da agricultura não foi marcado por humanos felizes e bem alimentados, comendo caças e frutas por campos verdejantes. Os milhares de anos de evolução nos levaram à situação em que não mais dispúnhamos de alimentos em abundância, porque nossas habilidades no manuseio de armas levaram à escassez de caça; a densidade humana já era suficiente para estabelecer uma concorrência relevante por frutos. Por tudo isso precisávamos de criar métodos alternativos de cultivo.  

Como já preceitua o dito popular: a necessidade é a mãe de todas as invenções. Com a tecnologia a agrícola não foi diferente. E seus efeitos ressoam fundo na humanidade. Foi daí que surgiu o superávit: o nível de produção que excede as nossas necessidades, gera as sementes para o plantio seguinte e ainda sobra. É essa sobra que é apropriada pelo produtor, gerando acúmulo de recursos, no caso, cereais para uso futuro.

A ideia de superávit simplesmente não coaduna com a vida nômade do período anterior. Antes, caçávamos, pescávamos, colhíamos alimentos prontos, cuja estocagem era impraticável. Por sua vez, a agricultura deu seus passos iniciais com cereais (trigo, milho, cevada, arroz), cuja estocagem é simples e eficiente.  

E foi da instituição do superávit que decorreram muitas outras, todas bastante familiares no nosso mundo atual: escrita, dívida, dinheiro, Estado nacional, exército, clero, burocracia, tecnologia... até as guerras bioquímicas foram gestadas a partir do superávit agrícola.

A escrita, por exemplo: surgida na Mesopotâmia, sua finalidade era o registro da quantidade de cereais depositados nos celeiros coletivos. Como era impraticável que cada agricultor dispusesse de seus próprios celeiros, utilizavam-se celeiros comuns, controlados por um guardião, onde eram depositados os superávits de cada um.

Inventar um sistema de escrita para que se pudessem emitir recibos a agricultores que depositassem seus grãos em celeiros coletivos foi algo não pensado por aborígenes australianos e indígenas americanos, por um motivo muito simples: a abundância de recursos de caça, pesca e colheita era tamanha que o máximo a que se lançaram foram pinturas artísticas e criações musicais. Controlar produções individuais era algo impensável. Portanto, não inventaram a escrita.

Bom, os agricultores contavam com trabalhadores em suas terras. Muitos desses trabalhadores recebiam conchas, nas quais constavam os quilos de trigo que o senhor da terra lhes devia. Esse trigo a débito do dono das terras ainda será produzido, haja vista a dívida contra o trabalhador corresponder à produção que ainda será gerada. Trata-se portanto de dívida futura. Mas, de toda forma, tinham liquidez e eram usadas normalmente para aquisição de mercadorias pelos trabalhadores.

Mas o grande salto veio a reboque da invenção da moeda em metal. Embora, num primeiro momento, tendamos a crer que sua invenção decorreu da necessidade de circulação da moeda, a história não foi bem essa. Na Mesopotâmia, as moedas surgiram para registrar o quinhão de cada produtor do superávit agrícola total. Havia até ensaios de moedas virtuais, quando no registro contábil constava uma dívida em moeda, mas cujo pagamento se daria in natura. Em outras sociedades as moedas metálicas eram tão pesadas que as unidades monetárias eram basicamente virtuais, sem expressão no mundo físico.

A base sobre a qual se edificou todo o edifício dos sistemas monetários, contudo, é a mesma: é preciso que todos creiam e respeitem os padrões monetários. E a palavra “crer” vem do latim credere, ou credit, em inglês.

Bem, para coordenar, executar e manter todo esse sistema monetário, era necessária e existência de um ente a que hoje chamamos Estado. Ito é, ainda que o dono da produção morresse, uma instituição coletiva se encarregaria de entregar ao credor sua parte de direito no superávit total. E era o Estado que garantia que o meio de pagamento circulante fosse fidedigno – palavra derivada de “fide”, do latim para fé, ou seja, acreditar, crer.

A simples existência de  um Estado é impossível sem superávits. Burocratas que julguem lides em torno de discordâncias quanto a valores devidos, policiais que garantam o exercício do direito de propriedade, governantes em busca do poder, tudo isso se sustenta na existência de superávits. Caso contrário, todos esses atores teriam de enfrentar os dissabores na lida no campo. Pense bem: sem superávit não haveria exército; portanto não haveria poder governamental; e assim o superávit seria apropriado por outros povos mais bem equipados com recursos bélicos.

A distribuição injusta e desigual da sriquezas é uma constante na história da humanidades. Quase smepre os superávits são distribuídos em benefício dos cidadãos mais bem colocados na hierarquia social: fossem militares que empunhassem as armas; fossem políticos poderosos, fossem comerciantes muito ricos. Mas é difícil crer que a maioria das pessoas não fosse capaze de pôr fim nessa relação nefasta entre Estado e poderosos.

Isso sempre se deu por meio do clero. Estes inculcavam nas pessoas uma ideologia que legitimava o estado de coisas na sociedade. Eram eles que convenciam as pessoas de que o governante de plantão o era por razões metafísicas de direito. Seja por portarem “sangue azul”, seja por ordem divina, o governante assim conseguia manter os 99% calados, enquanto o 1% privilegiado se esbaldava no superávit coletivo.

E o poder do clero derivava do discurso de que eram representantes terrenos de uma autoridade celeste inquestionável. E essa tarefa era facilitada, pois o próprio clero criava as regras que o legitimavam frente à sociedade. Mas os sacerdotes pertencentes ao clero também deviam sua existência ao tal do superávit coletivo. Caso contrário, estariam empunhando enxada, em vez de terços e hóstias.

As tecnologias que precederam a criação do superávit foram o manuseio dos metais e do fogo. As invenções tecnológicas posteriores, por sua vez, abundam e impressionam. Pois bem, temos aqui outra consequência direta do próprio superávit. Foi a partir dele que mentes brilhantes puderam se concentrar em inventar coisas úteis, em vez de emprestar sua força física para produzir os alimentos que os manteriam vivos. E foi assim que o caminho ficou aberto para a criação de arados, armas, joias, canais de irrigação etc.

Todavia, a morte não deixou de assombrar o mundo que surgiu em decorrência do superávit agrícola. Assim que se passou a empilhar toneladas de cereais nos silos comuns, somado às cidades e aldeias com uma densidade populacional elevada, acompanhadas umbilicalmente pelos animais de corte e de produção, gerou-se uma biomassa imensa que se tornou uma fábrica de bactérias cuja produção era ininterrupta. Essas bactérias evoluíram e se tornaram monstros mortais e quase incontroláveis. Trata-se de um novo e inédito estágio, nada comparável às doenças que os humanos conheciam até então. Algumas delas causaram ataques epidemiológicos cuja mortalidade fez retroceder o números de pessoas em escala continental.

Mas a evolução é incontida: pouco a pouco nossos organismos foram adquirindo tolerância e desenvolvendo resistência contra cada uma dessas pragas. Assim foi com a cólera, o tifo, com o vírus da gripe, agora hospedeiros de organismos imunes a eles. Tais carregavam consigo milhões de espécies dessas bactérias.

Porém, ao travarem contato com pessoas que não haviam passado por esse mesmo processo evolutivo, tornavam-se verdadeiras bomba-relógio: um mero aperto de mão era suficiente para se iniciar uma epidemia capaz de dizimar povos inteiros.

Na Austrália, nos EUA ou nas Américas essa foi a causa da grande maioria das mortes que exterminaram os povos nativos. Evidentemente, não demorou muito para que os europeus percebessem esse fato por si sós e o utilizassem a seu favor, transformando roupas e tecidos infectados por tifo, e dados de presente a tribos recentemente conhecidas, em armas de destruição em massa.

Pois bem, retornando o raciocínio: sem escassez não haveria superávit; sem superávit não existiria o mundo como o conhecemos... e como os povos que não desenvolveram a tecnologia agrícola não tiveram a chance de conhecer....


Rubem L. de F. Auto

Fonte: livro “Conversando sobre economia com a minha filha”