A sociedade brasileira vive há muito um dilema bastante
particular: de um lado, há as leis, que deveriam valer para todos; de outro, há
as relações pessoais, evidentemente exclusivas, que buscam a todo o momento
neutralizar e superar as normas pretensamente universais. Este conflito dá azo
a dois pilares sobre os quais se equilibra a vida em sociedade: o indivíduo,
que é o sujeito das leis; e a pessoa, o sujeito das relações sociais, localizado
numa escala da hierarquia do sistema. É do equilíbrio entre esses dois polos
que surge o iconoclasta “jeitinho brasileiro” – assim como seu primo mais
abusado, o “você sabe com quem está falando?”.
Nos Estados Unidos, na França, na Inglaterra, dentre outros,
ou as regras são obedecidas, ou simplesmente não existem. É por esperarem uma
plena coerência entre norma e vida cotidiana que os cidadãos daquelas
sociedades simplesmente param diante um placa onde se lê: Pare! Algo que soa um
tanto absurdo para muitos de nós. E mais: ficamos fascinados com a disciplina
desses seres tão solícito diante de uma norma universal, que vale para todos...
Torna-se ainda mais curioso quando passamos a associar a
disciplina obediente às normas como uma pretensa superioridade de dada “civilização”
se comparada à nossa; ou como um suposto “adiantamento” em relação à nossa
sociedade; ou ainda como se eles tivessem mais educação e apego à ordem,
inexistentes em nós. Nada disso, trata-se não mais do que adequação entre
normas jurídicas e prática social. Naquelas sociedades, a lei é um instrumento que
pretende viabilizar a boa convivência social, não é um instrumento para
submeter o cidadão ou para reinventar um “novo homem”.
Nas sociedades mais obedientes aos mandos legais, a lei não
se submete a privilégios, à lei privada, isto é, à lei que é aplicada
diferentemente, de acordo com a escala social do sujeito do crime ou da
contravenção.
Um exemplo prolífico é a figura da prisão especial,
privilégio extinto na França por ocasião da Revolução Francesa, e cujo fim deu
origem a um sistema judicial ágil, que opera de acordo com o que é legal ou
não, sem espaço para o mais ou menos.
Diante de leis que muitas vezes soam ilógicas ou, pior, que
criam dificuldades e impedimentos desnecessários, adotamos postura que muitas
vezes buscam driblar os obstáculos e atuar nas entrelinhas. Buscamos o “mais ou
menos”, as zonas cinzentas onde se podem achar “furos”: eis o jeitinho. É o
sistema legal da realidade social.
O jeitinho tenta, de modo pacífico e plenamente aceitável,
resolver problemas ao unir pessoas e leis.
Contudo, existe o patamar beligerante do jeitinho, a que
chamamos “você sabe com quem está falando?”. Este último é o argumento da
autoridade, quando o jeitinho explode e vira um ato de força: Você sabe com
quem está falando? Sou primo do governador!” Trata-se um apelo à hierarquia,
quando se pretende inverter a ordem das coisas, quando o usuário do serviço
estatal passa a ocupar o polo reservado à autoridade pública. E tudo isso se dá
pela introdução da relação social, em lugar da aplicação automática da letra
fria da lei.
A sociedade brasileira não se esgotou aqui no mecanismo de
criação de normas sociais que burlem a incontinência estatal na criação de leis
absurdas e desarrazoadas. Há ainda a “malandragem”, cantada e recantada em
versos e prosas.
A malandragem é uma variação das duas primeiras. O malandro
é o profissional do jeitinho; é aquele que consegue sobreviver fora da lei,
mediante o uso de “histórias”, “contos do vigário”, isto é, procurando sempre “roubar
com jeito”, invocando apelos emocionais, ao contrário da violência e rudez
usadas pelos bandidos.
Figura muito próxima do malandro é a do inconfundível
despachante. Este é o especialista em desvendar os meandros mais obscuros das
repartições públicas. É ele quem consegue unir duas pontas que, de outra
maneira, seriam inconciliáveis: normas e práticas sociais.
Quando o despachante consegue conectar ambientes impessoais
(repartição) com relações sociais, o despachante faz lembrar a figura
reconfortante do padrinho. É o despachante quem orienta o trâmite dos processos
de seu interesse, de modo a evitar que fiquem “parados” ou durmam um sono
profundo numa gaveta qualquer.
É nossa verdadeira aversão a ocupar um lugar social pleno de
anonimato que nos leva a taxar de “caxias” ou “autoritário” quem quer cumprir
as leis. Não é à toa nossa admiração por jogadores de futebol dotados de ginga –
é nosso desejo latente de driblar e dobrar o mandamus frio das normas.
A mesma sociedade que criou dois mundos que, por vezes, agem
isoladamente, o mundo da rua, impessoal, e o mundo da casa, dotado de alta
pessoalidade, criou também modos socialmente aceitáveis e originais de
sobreviver a esse turbilhão. Num mundo profundamente dividido e desigual, a
malandragem e o jeitinho promovem a reconciliação harmoniosa e concreta entre
as partes.
A regra é, de fato, a lealdade que devemos a amigos,
parentes e compadres. E os fatos permeados por essas normas vêm de longa data,
como denotado na famosa Carta de Pero Vaz de Caminha.
Rubem L. de F. Auto
Fonte: livro “O que é o Brasil?”, de Roberto da Matta.
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