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segunda-feira, 26 de novembro de 2018

COMO RIMAR LEI COM GREI? NOSSO JEITINHO



A sociedade brasileira vive há muito um dilema bastante particular: de um lado, há as leis, que deveriam valer para todos; de outro, há as relações pessoais, evidentemente exclusivas, que buscam a todo o momento neutralizar e superar as normas pretensamente universais. Este conflito dá azo a dois pilares sobre os quais se equilibra a vida em sociedade: o indivíduo, que é o sujeito das leis; e a pessoa, o sujeito das relações sociais, localizado numa escala da hierarquia do sistema. É do equilíbrio entre esses dois polos que surge o iconoclasta “jeitinho brasileiro” – assim como seu primo mais abusado, o “você sabe com quem está falando?”.

Nos Estados Unidos, na França, na Inglaterra, dentre outros, ou as regras são obedecidas, ou simplesmente não existem. É por esperarem uma plena coerência entre norma e vida cotidiana que os cidadãos daquelas sociedades simplesmente param diante um placa onde se lê: Pare! Algo que soa um tanto absurdo para muitos de nós. E mais: ficamos fascinados com a disciplina desses seres tão solícito diante de uma norma universal, que vale para todos...

Torna-se ainda mais curioso quando passamos a associar a disciplina obediente às normas como uma pretensa superioridade de dada “civilização” se comparada à nossa; ou como um suposto “adiantamento” em relação à nossa sociedade; ou ainda como se eles tivessem mais educação e apego à ordem, inexistentes em nós. Nada disso, trata-se não mais do que adequação entre normas jurídicas e prática social. Naquelas sociedades, a lei é um instrumento que pretende viabilizar a boa convivência social, não é um instrumento para submeter o cidadão ou para reinventar um “novo homem”.

Nas sociedades mais obedientes aos mandos legais, a lei não se submete a privilégios, à lei privada, isto é, à lei que é aplicada diferentemente, de acordo com a escala social do sujeito do crime ou da contravenção.

Um exemplo prolífico é a figura da prisão especial, privilégio extinto na França por ocasião da Revolução Francesa, e cujo fim deu origem a um sistema judicial ágil, que opera de acordo com o que é legal ou não, sem espaço para o mais ou menos.

Diante de leis que muitas vezes soam ilógicas ou, pior, que criam dificuldades e impedimentos desnecessários, adotamos postura que muitas vezes buscam driblar os obstáculos e atuar nas entrelinhas. Buscamos o “mais ou menos”, as zonas cinzentas onde se podem achar “furos”: eis o jeitinho. É o sistema legal da realidade social.

O jeitinho tenta, de modo pacífico e plenamente aceitável, resolver problemas ao unir pessoas e leis.
Contudo, existe o patamar beligerante do jeitinho, a que chamamos “você sabe com quem está falando?”. Este último é o argumento da autoridade, quando o jeitinho explode e vira um ato de força: Você sabe com quem está falando? Sou primo do governador!” Trata-se um apelo à hierarquia, quando se pretende inverter a ordem das coisas, quando o usuário do serviço estatal passa a ocupar o polo reservado à autoridade pública. E tudo isso se dá pela introdução da relação social, em lugar da aplicação automática da letra fria da lei.

A sociedade brasileira não se esgotou aqui no mecanismo de criação de normas sociais que burlem a incontinência estatal na criação de leis absurdas e desarrazoadas. Há ainda a “malandragem”, cantada e recantada em versos e prosas.

A malandragem é uma variação das duas primeiras. O malandro é o profissional do jeitinho; é aquele que consegue sobreviver fora da lei, mediante o uso de “histórias”, “contos do vigário”, isto é, procurando sempre “roubar com jeito”, invocando apelos emocionais, ao contrário da violência e rudez usadas pelos bandidos.

Figura muito próxima do malandro é a do inconfundível despachante. Este é o especialista em desvendar os meandros mais obscuros das repartições públicas. É ele quem consegue unir duas pontas que, de outra maneira, seriam inconciliáveis: normas e práticas sociais.

Quando o despachante consegue conectar ambientes impessoais (repartição) com relações sociais, o despachante faz lembrar a figura reconfortante do padrinho. É o despachante quem orienta o trâmite dos processos de seu interesse, de modo a evitar que fiquem “parados” ou durmam um sono profundo numa gaveta qualquer.

É nossa verdadeira aversão a ocupar um lugar social pleno de anonimato que nos leva a taxar de “caxias” ou “autoritário” quem quer cumprir as leis. Não é à toa nossa admiração por jogadores de futebol dotados de ginga – é nosso desejo latente de driblar e dobrar o mandamus frio das normas.

A mesma sociedade que criou dois mundos que, por vezes, agem isoladamente, o mundo da rua, impessoal, e o mundo da casa, dotado de alta pessoalidade, criou também modos socialmente aceitáveis e originais de sobreviver a esse turbilhão. Num mundo profundamente dividido e desigual, a malandragem e o jeitinho promovem a reconciliação harmoniosa e concreta entre as partes.

A regra é, de fato, a lealdade que devemos a amigos, parentes e compadres. E os fatos permeados por essas normas vêm de longa data, como denotado na famosa Carta de Pero Vaz de Caminha.


Rubem L. de F. Auto

Fonte: livro “O que é o Brasil?”, de Roberto da Matta.

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