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quinta-feira, 29 de novembro de 2018

PREVISÕES SOMBRIAS DE WILSON DAS NEVES E PAULO CÉSAR PINHEIRO



O Dia Em Que o Morro Descer e Não For Carnaval

O dia em que o morro descer e não for carnaval
ninguém vai ficar pra assistir o desfile final
na entrada rajada de fogos pra quem nunca viu
vai ser de escopeta, metralha, granada e fuzil
(é a guerra civil)

No dia em que o morro descer e não for carnaval
não vai nem dar tempo de ter o ensaio geral
e cada uma ala da escola será uma quadrilha
a evolução já vai ser de guerrilha
e a alegoria um tremendo arsenal
o tema do enredo vai ser a cidade partida
no dia em que o couro comer na avenida
se o morro descer e não for carnaval

O povo virá de cortiço, alagado e favela
mostrando a miséria sobre a passarela
sem a fantasia que sai no jornal
vai ser uma única escola, uma só bateria
quem vai ser jurado? Ninguém gostaria
que desfile assim não vai ter nada igual

Não tem órgão oficial, nem governo, nem Liga
nem autoridade que compre essa briga
ninguém sabe a força desse pessoal
melhor é o Poder devolver à esse povo a alegria
senão todo mundo vai sambar no dia
em que o morro descer e não for carnaval.


Rubem L. de F. Auto

segunda-feira, 26 de novembro de 2018

COMO RIMAR LEI COM GREI? NOSSO JEITINHO



A sociedade brasileira vive há muito um dilema bastante particular: de um lado, há as leis, que deveriam valer para todos; de outro, há as relações pessoais, evidentemente exclusivas, que buscam a todo o momento neutralizar e superar as normas pretensamente universais. Este conflito dá azo a dois pilares sobre os quais se equilibra a vida em sociedade: o indivíduo, que é o sujeito das leis; e a pessoa, o sujeito das relações sociais, localizado numa escala da hierarquia do sistema. É do equilíbrio entre esses dois polos que surge o iconoclasta “jeitinho brasileiro” – assim como seu primo mais abusado, o “você sabe com quem está falando?”.

Nos Estados Unidos, na França, na Inglaterra, dentre outros, ou as regras são obedecidas, ou simplesmente não existem. É por esperarem uma plena coerência entre norma e vida cotidiana que os cidadãos daquelas sociedades simplesmente param diante um placa onde se lê: Pare! Algo que soa um tanto absurdo para muitos de nós. E mais: ficamos fascinados com a disciplina desses seres tão solícito diante de uma norma universal, que vale para todos...

Torna-se ainda mais curioso quando passamos a associar a disciplina obediente às normas como uma pretensa superioridade de dada “civilização” se comparada à nossa; ou como um suposto “adiantamento” em relação à nossa sociedade; ou ainda como se eles tivessem mais educação e apego à ordem, inexistentes em nós. Nada disso, trata-se não mais do que adequação entre normas jurídicas e prática social. Naquelas sociedades, a lei é um instrumento que pretende viabilizar a boa convivência social, não é um instrumento para submeter o cidadão ou para reinventar um “novo homem”.

Nas sociedades mais obedientes aos mandos legais, a lei não se submete a privilégios, à lei privada, isto é, à lei que é aplicada diferentemente, de acordo com a escala social do sujeito do crime ou da contravenção.

Um exemplo prolífico é a figura da prisão especial, privilégio extinto na França por ocasião da Revolução Francesa, e cujo fim deu origem a um sistema judicial ágil, que opera de acordo com o que é legal ou não, sem espaço para o mais ou menos.

Diante de leis que muitas vezes soam ilógicas ou, pior, que criam dificuldades e impedimentos desnecessários, adotamos postura que muitas vezes buscam driblar os obstáculos e atuar nas entrelinhas. Buscamos o “mais ou menos”, as zonas cinzentas onde se podem achar “furos”: eis o jeitinho. É o sistema legal da realidade social.

O jeitinho tenta, de modo pacífico e plenamente aceitável, resolver problemas ao unir pessoas e leis.
Contudo, existe o patamar beligerante do jeitinho, a que chamamos “você sabe com quem está falando?”. Este último é o argumento da autoridade, quando o jeitinho explode e vira um ato de força: Você sabe com quem está falando? Sou primo do governador!” Trata-se um apelo à hierarquia, quando se pretende inverter a ordem das coisas, quando o usuário do serviço estatal passa a ocupar o polo reservado à autoridade pública. E tudo isso se dá pela introdução da relação social, em lugar da aplicação automática da letra fria da lei.

A sociedade brasileira não se esgotou aqui no mecanismo de criação de normas sociais que burlem a incontinência estatal na criação de leis absurdas e desarrazoadas. Há ainda a “malandragem”, cantada e recantada em versos e prosas.

A malandragem é uma variação das duas primeiras. O malandro é o profissional do jeitinho; é aquele que consegue sobreviver fora da lei, mediante o uso de “histórias”, “contos do vigário”, isto é, procurando sempre “roubar com jeito”, invocando apelos emocionais, ao contrário da violência e rudez usadas pelos bandidos.

Figura muito próxima do malandro é a do inconfundível despachante. Este é o especialista em desvendar os meandros mais obscuros das repartições públicas. É ele quem consegue unir duas pontas que, de outra maneira, seriam inconciliáveis: normas e práticas sociais.

Quando o despachante consegue conectar ambientes impessoais (repartição) com relações sociais, o despachante faz lembrar a figura reconfortante do padrinho. É o despachante quem orienta o trâmite dos processos de seu interesse, de modo a evitar que fiquem “parados” ou durmam um sono profundo numa gaveta qualquer.

É nossa verdadeira aversão a ocupar um lugar social pleno de anonimato que nos leva a taxar de “caxias” ou “autoritário” quem quer cumprir as leis. Não é à toa nossa admiração por jogadores de futebol dotados de ginga – é nosso desejo latente de driblar e dobrar o mandamus frio das normas.

A mesma sociedade que criou dois mundos que, por vezes, agem isoladamente, o mundo da rua, impessoal, e o mundo da casa, dotado de alta pessoalidade, criou também modos socialmente aceitáveis e originais de sobreviver a esse turbilhão. Num mundo profundamente dividido e desigual, a malandragem e o jeitinho promovem a reconciliação harmoniosa e concreta entre as partes.

A regra é, de fato, a lealdade que devemos a amigos, parentes e compadres. E os fatos permeados por essas normas vêm de longa data, como denotado na famosa Carta de Pero Vaz de Caminha.


Rubem L. de F. Auto

Fonte: livro “O que é o Brasil?”, de Roberto da Matta.

quinta-feira, 22 de novembro de 2018

ESPÍRITOS PERDIDOS NO MUNDO DA MATÉRIA



SPIRITS IN THE MATERIAL WORLD – THE POLICE


There is no political solution
To our troubled evolution
Have no faith in constitution
There is no bloody revolution
We are spirits in the material world
Are spirits in the material world
Are spirits in the material world
Are spirits in the material world
Our so-called leaders speak
With words they try to jail you
They subjugate the meek
But it's the rhetoric of failure
We are spirits in the material world
Are spirits in the material world
Are spirits in the material world
Are spirits in the material world
Where does the answer lie?
Living from day to day
If it's something we can't buy
There must be another way
We are spirits in the material world
Are spirits in the material world
Are spirits in the material world
Are spirits in the material world
Are spirits in the material world
Are spirits in the material world

Não há solução política
Para nossa evolução atrapalhada
Não tenho fé na Constituição
E não vejo nenhuma revolução sangrenta

Somos espíritos no mundo material
Espíritos no mundo material...



Nossos grandes líderes falam
Com as palavras de quem quer lhes prender
Subjugam os obedientes
Mas essa é a retórica do fracasso

Somos espíritos num mundo material ...



Onde reside a mentira?
Vivendo nosso dia a dia
Se há algo que não podemos comprar
Terminamos achamos outra maneira

Somos espíritos num mundo material...


Rubem L. de F. Auto

terça-feira, 13 de novembro de 2018

COELHOS, GUAICAIPURO, EMBARGOS E VENEZUELA: “O FUTURO É UMA CÂMARA DE GÁS”



Poucas crises internacionais tiveram mais publicidade no Brasil do que a crise econômica e política da Venezuelana. Quando os preços internacionais do petróleo despencaram após 2014, deixando o patamar anterior acima de U$ 100 para pouco mais de U$ 30, em 2016, o país se viu em meio a uma tempestade perfeita.

A crise política do início da década de 2000, que garantiu a permanência de Hugo Chavez no poder, após fracassada tentativa de detê-lo, levou ao poder um grupo político completamente destoante daqueles a que o cenário político Venezuelano estava acostumado. Identificado com bandeiras sociais, Chavez prometia combater a desigualdade e a pobreza extrema em seu país. Mas, com que dinheiro?

Essa pergunta foi respondida a partir de 2003. Quando da entrada da China na OCDE, tornando-se membro ativo do comércio internacional, o crescimento exponencial do gigante asiático elevou o preço internacional das commodities, entre elas o petróleo. Surgiram então os Golden Years dos países em desenvolvimento: saindo do patamar dos U$ 20, o petróleo bateu os U$ 140 em meados de 2008. A crise internacional de 2008 deixou sua marca, mas os preços internacionais se recuperaram rapidamente.

A riqueza que afluiu desse cenário foi usada para irrigar programas sociais e financiar obras públicas, que garantiram emprego e renda à população. De fato, a oposição política a seu governo minguava, a ponto de se utilizarem de veículos internacionais para “denunciar” uma eventual ditadura bolivariana, associando-a a governos de esquerda da América Latina, como Brasil, Argentina, Bolívia, Uruguai, Equador etc. Mas de nada adiantava. Note-se, contudo, que a dependência das rendas do petróleo não garantiu mais investimentos em exploração e produção. O petróleo produzido se manteve no mesmo patamar dos anos anteriores.  

Contudo, por volta de 2014, Arábia Saudita decidiu aumentar a sua produção de petróleo. Inevitavelmente, o efeito que se segue a essa decisão é queda dos preços internacionais. O motivo, provavelmente, era tornar inviável a produção de petróleo a partir de fontes alternativas, como o shale gas norte americano (cujo custo de produção é mais elevado). Mas o impacto sobre a renda dos países exportadores de petróleo foi dramático (a Arábia Saudita se preparou para a redução de preços acumulando elevadíssima reserva internacional).

No caso da Venezuela, o cenário que se armou foi apocalíptico. Dependendo da manutenção de programas sociais para conter a sanha da oposição, que contava com muitos dos principais empresários do país e que passou a lançar mão de artifícios como redução dramática de investimentos, redução da oferta de itens básicos, dentre outras táticas para tirar popularidade do governo eleito. Pretendendo não abrir mão de suas conquistas eleitorais, o governo manteve seus gastos sociais, o que desencadeou um processo dramático de inflação no país. E a espiral do descenso não parece ter um fim previsível.

A inflação que já atingiu o patamar histriônico de 1 milhão por cento e já demoveu mais de 2 milhões de venezuelanos de seu país. São refugiados transpondo fronteiras em direção à Colômbia, Peru, Equador, Panamá, ilhas caribenhas e até mesmo ao Brasil, embora em número bastante inferior aos demais, talvez pela diferença linguística.

Ao cenário acima, somam-se os bloqueis comerciais decretados pelos EUA e por países europeus. Este último obstáculo previne o país, notório importador de produtos industrializados, de conseguir de alimentos a medicamentos no mercado interno. Ainda mais grave é a impossibilidade de adquiri máquinas e equipamentos relacionados à indústria petroquímica. O resultado disso é o encolhimento vertiginoso da produção de petróleo: do pico de quase 3 milhões de barris em meados de 2014, o país já se encontra produzindo menos de metade desse valor.

Diversas medidas foram adotadas para lidar com a tragédia que se abatia sobre as contas públicas (o déficit orçamentário já supera os 20% do PIB). Uma das mais comentadas foi o lançamento de uma moeda digital estatal lastreada em barris de petróleo (embora muitos digam que foi uma maneira de competir com os Bitcoins, cuja adoção batia recordes no país). O lançamento das moedas no mercado primário ajudou a aliviar o peso sobre as contas públicas.

A Venezuela tem uma das maiores reservas de ouro do mundo, talvez a quarta maior, embora a produção esteja bem abaixo de suas potencialidades. Recentemente o governo lançou o programa de poupanças em ouro, usando barras certificadas de 1,5g e 2,5g. A compra desses certificados também injetou receitas nos cofres públicos.

Outra medida polêmica foi o incentivo à criação de fazendas urbanas. O presidente Maduro apareceu em cadeia nacional alimentando suas galinhas e colhendo seus ovos: a mensagem era clara, todos deveriam seguir o exemplo. Também se distribuíram coelhos para engorda e abate – mas os venezuelanos terminaram por adotá-los como pets. Difícil crer que isso mudaria a situação do país, mas pelo menos deu uma ideia do potencial criativo da mente humana...

Em agosto de 2018, finalmente foi adotada uma política mais ortodoxa: a moeda do país foi renomeada e foram-lhe cortados 5 zeros. Também se prometeram cortes de subsídios sobre a gasolina e outros produtos.

Mas tudo isso soou como uma gota d`água no oceano. Tendo dar conta de uma economia em frangalhos, despesas insustentáveis e um bloqueio internacional insuperável, a Venezuela só conseguiria respirar razoavelmente se contasse com o apoio de um país economicamente forte e disposto a estender a mão: surge então ao largo a China! Evidentemente ela trazia consigo o preço desse apoio.

Em setembro deste ano, Maduro esteve na China, para uma visita de quatro dias e que incluíam algumas providências, como a assinatura de 28 acordos bilaterais (em áreas tão diversas quanto energia, mineração, ouro, ferro, tecnologia, educação, saúde e cultura) e um empréstimo de 5 bilhões de dólares – além de acertos para a construção do quarto satélite venezuelano.

Foi a quarta visita de Maduro a Pequim, desde que assumiu a presidência, em 2013. Contudo, sem dúvidas, a que ocorreu em momento mais conturbado: Maduro enfrenta hostilidades de governos latino-americanos, subcontinente esse que viu a direita assumir o posto máximo em diversos países; os EUA ameaçaram a Venezuela com uma eventual intervenção militar para derrubar o governo constituído; sanções financeiras mais extremadas foram decretadas pelo governo de Donald Trump.
Os Yuans vertidos aos cofres venezuelanos são fundamentais para financiarem o “Programa de Recuperação Econômica, Crescimento e Prosperidade”.

Mas os acordos internacionais buscados por Caracas incluem mais algumas nações na Ásia, no Oriente Médio e na Europa. Essa é a saída almejada para ter acesso a crédito externo, apesar das sanções financeiras. Conforme as palavras de Maduro aos líderes chineses: “Eu tive de superar as sanções econômicas decretadas pelos EUA e pela Europa, que perseguem contas bancárias do governo venezuelano, sequestram bilhões de dólares e contas no estrangeiro e bloqueiam nosso comércio”.

Outro empréstimo de U$ 5 bilhões foi concedido especificamente para retomar a indústria petrolífera do país. É um alívio, após uma queda vertiginosa na produção, ações judiciais internacionais e desvio de dinheiro em inúmeros casos de corrupção. Existe ainda a possibilidade de se renegociarem os termos de empréstimos anteriores.

Os recursos devem ser investidos em inúmeras companhias na região do Orinoco, que tem 300 poços de petróleo prontos para a exploração, possivelmente contendo 31,2 bilhões de barris.
Quanto ao preço cobrado pelo governo chinês... bom: 9,9% das ações que a PDVSA, estatal de petróleo do país, detinha junto à SINOVENSA, consórcio sino-venezuelano, foram cedidos à CNPC – Chinese National Petroleum Consortium. A SINOVENSA produz 130 mil barris de petróleo na Venezuela atualmente.

Não são poucas as denúncias de que a Venezuela está privatizando sua produção petrolífera para empresas chinesas.

Outro objetivo almejado pelo governo AMduro é tomar parte no projeto “Nova Rota da Seda”. Estipulado em algo em torno de 900 bilhões de dólares, este projeto visa unir Europa, Ásia e Oriente Médio por emio de rotas econômicas e marítimas, abarcando 60 países, 75% das reservas de energia do mundo e 70% da população mundial. A Venezuela é o segundo membro latino-americano, seguindo logo atrás do Uruguai.

Outro ponto essencial foi a construção do satélite Guaicaipuro – nome de uma importante liderança indígena a dificultar a invasão espanhola. É o quarto, sucedendo ao Bolívar, Miranda e Sucre. A tecnologia é inteiramente chinesa e Venezuelana.

A impossibilidade de importar medicamentos (especialmente insulina e antirretrovirais) foi amenizada com o acordo firmado com a Meheco, empresa de medicamentos chinesa.
O Comitê de supervisão desses acordos conta, atualmente, com 124 firmas chinesas e 49 venezuelanas.  

Importante notar que a Venezuela tem os EUA como principal mercado para seu petróleo desde que se encontrou petróleo no país, nos idos da década de 1930. As crises recentes têm reduzido significativamente a quantidade de óleo cru que chega aos portos norte americanos, a ponto de refinarias especializadas em processar o petróleo da Venezuela terem de substituí-lo pelo petróleo de outras partes, como México, Colômbia e Argentina. Este movimento demonstra como a Venezuela está se descolando da influência do Hemisfério Ocidental e se movendo para o Oriente.

Em outubro passado, uma notícia acrescentou mais um ator importante ao caldo que já se formava: a Rússia tomou parte numa reunião, ao lado do governo chinês, tendo como objetivo a recuperação econômica da Venezuela. A reunião se deu com a vice-presidente da Venezuela, Delcy Rodriguez.

A Rússia já tomou a iniciativa de enviar especialistas econômicos a Caracas para assessorarem o governo Maduro. Essas informações coincidem com testemunhos de brasileiros que garantiram terem visto inúmeros assessores russos e chineses junto aos principais integrantes do governo Venezuelano.
Por todo o acima exposto, tendo-se em mente os recentes desentendimentos envolvendo EUA e China em torno do comércio bilateral, é de se temer que futuros enfrentamentos bélicos descambem para uma guerra ao norte do Brasil. Se houver, que não envolva armas nucleares.

Enquanto isso, a Arábia Saudita anunciou a redução de sua produção de petróleo, o que põe os preços acima de 80 dólares, de maneira sustentável. Caso a produção venezuelana retome, muito da tragédia econômica e humanitária atual deverá ficar para trás.


Rubem L. de F. Auto


Fontes:

terça-feira, 6 de novembro de 2018

O FREIO DE MÃO DA ECONOMIA OCIDENTAL



As últimas décadas têm demonstrado um efeito sobre a economia ocidental batizado de “grande reconvergência”. O crescimento econômico acelerado na Ásia tem levado à redução do “gap” que separa a riqueza do ocidente daquela do oriente, levando o centro de gravidade da economia mundial cada vez mais em direção ao Leste. E esse era mais ou menos o cenário em 1500, quando da ascensão do Ocidente, a reboque da “descoberta” da América.

E a palavra que melhor define o fenômeno acima é “desalavancagem”: reduzir dívidas e reequilibrar orçamentos. Só nos EUA, a soma das dívidas pública e privada excede em 250% o valor do PIB. A situação não é muito diferente na Grã Bretanha, na Austrália, no Canadá, na Coréia do Sul e nos países desenvolvidos da Europa continental, como a Alemanha.

O raciocínio é o seguinte: famílias se endividaram excessivamente, estimuladas pelo aumento estratosférico do preço dos imóveis; para pagar suas dívidas, as famílias tiveram de reduzir seu consumo; tal redução levou à desaceleração da demanda agregada; o governo passou a temer uma eventual deflação (redução de preços) acompanhada de desaceleração da economia, o que prejudicaria o pagamento da dívida; para tanto, o governo interveio na economia por meio de injeção de moeda e aumento dos gastos públicos; evitou-se a contração da economia, mas a crise da dívida privada se transformou numa crise da dívida pública.

Quanto aos Bancos Centrais, inflaram seus balanços para ajudar a fechar os balanços patrimoniais dos bancos privados. Seja como for, a recuperação econômica observada ficou bem abaixo do que se esperava.

Ao cenário um tanto cinzento acima descrito, somam-se o aumento do desemprego provocado pela automação e a enorme concentração econômica das últimas décadas.

A teoria econômica fornece três métodos básicos para se lidar com  a dívida pública: 1) elevar a taxa de crescimento do PIB acima da taxa de juros incidente sobre a dívida; 2) declarar moratória da dívida pública e cessar os pagamentos da dívida privada; 3) utilizar a inflação para forçar a redução da dívida real.

Todas essas hipóteses já foram postas em prática. A Alemanha pós-I Guerra Mundial usou a inflação para fazer frente às despesas brutais impostas pelos vencedores do conflito no Tratado de Versalhes – terminaram convivendo com uma hiperinflação épica. Já os EUA pós-Crise de 1929 optaram por declarar moratória da dívida pública e inadimplir quanto às privadas. Ressalte-se que o mundo que saiu a Segunda Guerra usou largamente a inflação a seu favor, como foi o caso dos países europeus em geral.

Mas a capacidade de dada sociedade conviver com inflação é algo que deve ser analisado sob o ponto de vista político. São fatores importantes para que ela venha a ocorrer: a educação da elite local; competição ´; o funcionamento do sistema judicial, os índices de violência ; o cenário político local.

Por fim, vale expor o fato de que apenas 10 instituições financeiras atualmente manejam ¾ de todos os ativos financeiros dos EUA. E, pasmem, faltam cerca de 50 bilhões de dólares para que elas atendam aos requisitos mínimos de capital bancário para atender aos critérios dos Acordos da Basileia III.

Somam-se a esses obstáculos um tanto desanimadores: atualmente é cem vezes mais caro lanças um medicamento novo no mercado do que há 60 anos; os critérios atuais utilizados pela FDA (Food and Drug  Administration) são de tal monta incompreensíveis que vedariam a venda de sal de cozinha nos EUA (afinal, em grandes quantidades é tóxico); um jornalista norte-americano levou 65 dias para conseguir a permissão para montar uma barraca de limonada em New York (foram cinco semanas de espera até o Certificado de Segurança Alimentar), problema tipicamente citado por economistas para explicar o desempenho ruim de países em desenvolvimento.

Hoje, é 50% mais improvável que uma pessoa nascida no estrato 25% mais pobre dos EUA consiga ascender ao estrato 25% mais rico da sociedade, comparando-se com 30 anos atrás.

Tudo isso somado leva a crer na tal “elite cognitiva”, conforme descrita por Charles Murray: pessoas educadas em universidade privadas caríssimas; que contraem matrimônio entre si, num círculo social bastante exclusivo; que residem em endereços muito valorizados. Essa nova “casta” de super-ricos cria os mecanismos que garantem o sucesso de seus descendentes, ainda que estejam distantes anos-luz de qualquer sombra de brilhantismo.

Talvez resida aí o motivo da sociedade de oportunidades ter se tornado um tormento aos mais pobres.


Rubem L. de F. Auto

Fonte: livro “A grande degeneração”, Niall Ferguson